quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Como a humanidade escolheu as suas mamas

Quando comparados com os nossos primos símios, nós humanos apresentam diferenças físicas distintas associadas à sexualidade. Copulamos ventre com ventre, as fêmeas da nossa espécie podem expressar visivelmente a sua ovulação e o pénis dos machos humanos é também relativamente maior que os pénis dos outros símios. Caro (1987), citando vários autores, faz assim a introdução do seu artigo de abordagem à origem do tamanho das mamas (ou seios) das mulheres.

Caridade Romana - Reubens
Fonte da Imagem: https://pl.m.wikipedia.org/wiki/Plik:Roman_Charity_-_Pieter_Pauwel_Reubens.jpg#/media/File%3ARoman_Charity_-_Pieter_Pauwel_Reubens.jpg

Ao contrário de todos os outros mamíferos, na espécie humano, as fêmeas desenvolvem os seus seios na puberdade, e não durante a primeira gravidez, através de um processo de hipertrofia dos tecidos adiposos do peito. No entanto os seios de gravidas crescem temporariamente nesse período, independentemente do tamanho anterior. Depois de cada gravidez os seios tendem a voltar ao tamanho anterior, ainda que a idade leve a perdas de sustentação e firmeza. Depois de mais esta introdução ricamente citada, Caro (1987) defende que os seios são sinalizadores, porque parte substancial do seu volume consiste meramente em tecido adiposo, com a sua forma a ser facilmente detetável tanto de frente como de lado, tal como pelo contraste de cor dos mamilos perante a pele do peito. O autor refere que nos primórdios da nossa espécie seria valorizável a acumulação de gordura, especialmente nas mulheres e em determinadas áreas do seu corpo, associadas à sexualidade e à reprodução. No entanto, são apenas hipóteses, tal como se irá verificar em muitos dos autores citados.

Em tempos imemoriais terá então ocorrido um processo de seleção sexual com base nas anteriores diferenças físicas citadas (Marlowe, 1998), porque os homens acham os seios atrativos, devido à sua função de acumulação de gordura e potencial de reprodução (Cant 1981; Gallup 1982) uma vez que abaixo de um certo limiar de gordura as mulheres não podem ovular (Cohen 1980; Frisch 1978). Embora alguns autores prefiram a seleção mais relacionada com a geração de descendência que com a sexualidade propriamente dita, numa abordagem geral as hipóteses não variam assim tanto. Hoje este fator de atratividade pelo simples facto de estarmos perante uma acumulação localizada de gordura causa estranheza.

Autores como Morris (1967) já sugeriam que o acumular de gordura no peito, ancas e rabo seriam formas de proteger a mulher durante a copulação, peito com peito. Outros, tal como Campbell (1974) sugerem que estas caraterísticas foram sendo preservadas e amplificadas por seleção sexual intencional, em que as mulheres que evidenciavam essas caraterísticas tendiam a ter mais descendentes, ao demonstrarem, através de atributos físicos, o seu suposto potencial de reprodução. Outros autores seguem uma abordagem funcional ainda mais pragmática, tal como LeBlanc & Barnes (1974), que referem que os seios grandes permitiam amamentar enquanto agarravam e transportavam os filhos. Outra possibilidade seria que o tamanho poderia ter influência na capacidade de produzir leite, no entanto isso está por provar (Caro, 1987). 

Cant (1981) e Gallup (1982) referem que a acumulação de gordura depositada nos seios, ancas e rabo indicam reservas nutricionais, altamente úteis para a reprodução, com Masia-Lees et al. (1986) a referirem que a permanência dessas fisionomias resulta de processos de seleção, seguindo as mesmas lógicas dos autores anteriores (Low et al., 1987). Low et al. (1987) acrescenta a estas abordagens o um foco no engano e dissimulação, porque a gordura acumulada nesses locais induz a um aumento da produção de leite e ao alargamento dos ossos pélvicos que facilitariam o parto, mas que na prática não é o que aparenta ser. Outra evidência que os autores também referem é que as mulheres de culturas e ambientes climáticos distintos, por exemplo naqueles que obrigam a usar mais roupa como os ambientes em que vivem os esquimós, estas curvas femininas são em média menos pronunciadas. 

Para (Marlowe, 1998) os seios grandes são sinalizadores de idade, firmes na juventude e tendendo para o descaimento à medida que a vida avança, revelando a reduzida apetência para a produção de descendência a partir de determinada altura da vida, tendo um efeito erótico variável. 

Depois de toda esta exposição devemos ficar com as devidas dúvidas e ressalvas. Os próprios autores indicam serem hipóteses, embora pareçam muito plausíveis e assentando em deduções sólidas. Independentemente disso, sabemos do poder da humanidade para mudar os ambientes e das suas capacidades adaptativas a esses mesmos desafios ambientais. Essa capacidade terá sido tanta, tal a nossa flexibilidade como espécie, que até conseguimos enquanto coletivo mudar a fisionomia dos géneros, escolhendo o formato dos nossos corpos. Para refletir.

Referências:
Cant, J.G.H. (1981). Hypothesis for the evolution of human breasts and buttocks. American Naturalist, 117: 199-204.
Campbell B. G. (1974). Human Evolution, 2nd edition. Chicago: Aldine.
Cohen, M. N. (1980). Speculations on the Evolution of Density Measurement and Population In Homo Sapiens. In Biosocial Mechanisms of Population Regulation, M. N. Cohen, R. S. Malpass, and H. G. Klein, eds. Pp. 275-304. New Haven: Yale University Press.
Caro, T. M. (1987). Human breasts: Unsupported hypotheses reviewed. Human Evolution, 2(3), 271-282.
Frisch, R. (1978). Population, Food Intake, and Fertility. Science 199:22-30.
Gallup, G.G. (1982). Permanent breast enlargement in human females: A sociobiological analysis. Journal of Human Evolution, 11: 597-601.
Le Blanc S. A. & Barnes E. (1974). On the adaptive significance of the human breast. American Naturalist, 108: 577
Low, B. S., Alexander, R. D., & Noonan, K. M. (1987). Human hips, breasts and buttocks: Is fat deceptive?. Ethology and Sociobiology, 8(4), 249-257.
Marlowe, F. (1998). The nubility hypothesis. Human Nature, 9(3), 263-271.

Morris, D. (1967). The Naked Ape. London: Jonathan Cape.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Séries: filosofar em "The Good Place"

Há séries que são produzidas para agradar às massas mesmo utilizando temas que habitualmente não são assim tão generalistas. “The Good Place” é uma dessas séries, ao ser uma sitcom que fala de filosofia, muito particularmente de ética e moral. Trata-se de uma série da NBC disponibilizada pela Netflix em Portugal, com atores mais ou menos conhecidos, à exceção de Ted Danson e da estrela em ascensão Kristine Bell. Por falar em atores, o desempenho de todos é impecável, especialmente da personagem Janet. 


Nesta série há que evitar descrever os episódios, pois o perigo de revelar informações que estraguem o enredo original criado por Michael Schur é real. Devo apenas dizer que se passa na vida pós-morte, que é alucinada, hilariante e carregada de citações filosóficas e filósofos, embora nunca apareçam diretamente. Espero não ter revelado demasiado. Mas há muito tempo que não sentia tanto fascínio por uma série deste tipo. A velocidade com que a história avança de forma imprevisível é quase vertiginosa. Não arrisquem saltar episódios!

O modo como os postulados filosóficos e as citações são introduzidas nos diálogos garante interesse para quem acha que a filosofia é um tédio. Aqueles que eventualmente conheçam os esses filósofos famosos vão sorrir também, pois é tão raro vermos conteúdos filosóficos serem abordados em criações deste tipo – o que é pena porque já se demonstrou que a filosofia pode ser hilariante, tal como se demonstrou neste blogue por várias vezes. 

“The Good Place” acaba por ser uma série de reflexão filosófica, ética e moral, cheia de sarcasmos e críticas ao nosso modo de vida. É uma série para acabarmos o dia a refletir na nossa vida e tentar melhorar a nossa pontuação com um sorriso. Não perceberam, então vão lá ver e terão acesso a um lugar melhor, nem que seja na vossa consciência.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

Tarot: o primeiro jogo de storytelling que inspirou os jogos modernos?

Existem muitas atividades que poderiam ser vistas como jogos. A arte de contar histórias é tão antiga como a humanidade, ou pelo menos tão antiga como a capacidade de comunicar oralmente. Desde que a nossa espécie começou a comunicar surgiu, invariavelmente, a possibilidade de contar histórias, e gerar narrativas para os mais diversos propósitos e a socorrer-se de elementos que pudessem tornar a dita história ainda mais cativante e emocionantes -  envolvente e imersiva como se diz agora.

A Cartomante - François Joseph Navez
Fonte: http://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/lot.205.html/2016/voyage-rome-particuliere-italienne-pf1640
O lado narrativo dos jogos tem sido muito importante para a sua afirmação como produto cultural e como elemento atrativo, algo que tem sido muito explorado nos jogos digitais. No entanto há jogos muito mais antigos que já faziam isso. Lembrando alguns dos primeiros jogos de tabuleiro, como o Senet egípcio e o Jogo Real de Ur da mesopotâmia, tem-lhes sido atribuída forte possibilidade de terem sido utilizados para fins religiosos e de geração de narrativas, enquadrados em rituais e até como formas de adivinhação e análise moral dos vidas e comportamentos dos jogadores (Donovan, 2017). Num texto anterior estes dois jogos foram explorados em mais detalhes (ver aqui).

Por outro lado, existem os jogos puramente narrativos, que servem para gerar histórias, ou então ainda os jogos que são histórias. Marco Arnaudo (2018) faz esta distinção, entre os jogos em que são os jogadores que contam as histórias, através dos componentes do jogo, e os jogos cujo elemento central é uma história em que os jogadores participam, mas sem total liberdade de a alterar ou construir de base. Ou seja, temos os jogos em que os jogadores criam o storytelling e os jogos que têm de lidar com um storytelling mais definido.   Exemplo disso são os jogos como o Dixit, em que os jogadores constroem histórias a partir das cartas, e jogos de role play (RPG) como Dungeons & Dragons em que há uma história e os jogadores vão interagir sobre ela com muitas restrições, através das suas personagens. Assim, embora os jogos de RPG possam ser mais recentes, poucas décadas se considerarmos os designs ditos contemporâneos, os jogos de storytelling são muito mais antigos. Um destes primeiros jogos de storytellig que ainda circula são as cartas de Tarot, com as suas múltiplas ilustrações e personagens, utilizadas nas cortes da renascença para gerar histórias e múltiplas narrativas (Arnaudo, 2018). De notar que, mesmo hoje, quando se usam as cartas para fazer adivinhações e interpretações, estão a ser gerados processos de storytelling. Resta saber até que ponto o Dixit não se inspirou nesta utilização lúdica do próprio Tarot. Se notarem, o próprio tamanho das cartas de Dixit é o tamanho Tarot. 

Jogos há muitos, histórias também. Quase todos os jogos contam histórias, dependendo muito também de quem os joga. No entanto, uns contam mais histórias que os outros.

Referências bibliográficas:
Arnaudo, M. (2018). Storytelling in the Modern Board Game: Narrative Trends from the Late 1960s to Today. McFarland.
Donovan, T. (2017). It's all a game: The history of board games from Monopoly to Settlers of Catan.
Macmillan.

sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Porque nos coçamos?

Coçar é um estímulo neurológico. As células ao produzem histamina permitem que neurónios especializados reajam a esse efeito, e assim nos induzam à vontade de coçar. Ou seja, trata-se de um processo neurológico, embora possa ser ativado por várias razões. Parece algo tão físico no seu efeito, mas acaba por ser resumido a um processo químico. Ao coçarmos surgem depois novos efeitos, mais compostos químicos são produzidos, incluindo alguns que nos geram prazer.  Trata-se de um exemplo em que a química se mistura com a biologia e a física, palavra de leigo.

As criadas - Paula Rego
Fonte: https://www.saatchigallery.com/artists/artpages/rego_paula_the_maids.htm

As razões para surgir a comichão podem ser muitas, fruto de desequilíbrios bioquímicos, mas que podem ter origens que fenómenos puramente físicos e mecânicos, como choques, cortes e perfurações. No fundo são sinais de alerta do sistema nervoso para nos levar a tomar medidas, embora possa não ser evidente e até ser fruto de patologias que geram ainda mais problemas se não pararmos de coçar. 

Confesso que este tema sempre me despertou curiosidade. Sendo a biologia e a saúde áreas das quais sei muito pouco foi ainda mais complicado procurar algumas fontes para coçar o assunto. Mas deu para perceber a complexidade do assunto, que existe investigação este momento a ser feita sobre o assunto e que provavelmente os cientistas ainda vão ter muito com que se coçar para resolver os mistérios das comichões. Comichões existem muitas, e nós coçadores inevitáveis. Mas será que coçar é sempre a melhor solução? O problema não poderá ser outro?

Referências bibliográficas:
Bautista, D. M., Wilson, S. R., & Hoon, M. A. (2014). Why we scratch an itch: the molecules, cells and circuits of itch. Nature neuroscience, 17(2), 175.

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Participar não é sinónimo de colaborar

É muito comum usar os termos participação e colaboração quase como sinónimos, por vezes mesmo como meros adjetivos em tentativas de descrever alguns processos de decisão pública como sendo abertos aos cidadãos. No entanto os dois conceitos são muito diferentes, convindo evitar o seu uso como mero floreado para adornar um qualquer exercício de poder público. 

American Gothic - Grant Wood
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/American_Gothic
Convém ir ler um pouco o que foi sendo escrito sobre isto. Podemos voltar a Arnstein (1969) que definiu a sua escada da participação, com 8 degraus crescentes de participação e decisão dos cidadãos: manipulação, terapia, informação, consulta, apaziguamento, parceria, delegação de poder, controlo cidadão. Notamos na base desta escada um poder manipulador do poder político e no topo um poder partilhado com os cidadãos. Creighton (1992) simplificou e definiu apenas 4 divisões: informação pública, em que os cidadãos são meramente informados das decisões; participação formal, devendo haver audição antes das decisões; consulta, com abertura e poder dos cidadãos para influenciarem a decisão; construção de consensos com os cidadãos, incluindo reformulações e ajustes até que se concorde com a decisão. Münster et al. (2017) simplificaram ainda mais, dividindo os processos de participação em três níveis básicos: informação, consulta e colaboração.

Estas breves referências servem apenas de enquadramento para percebermos que a participação pode ser muito diferente da colaboração. Participar podem ser uma atividade tão passiva como estar presente para ser manipulado pelo poder político representativo, segundo o primeiro nível da escada de Arnstein (1969), mas pode ser, numa perspetiva menos negativa, apenas uma forma de aceder à informação, embora sem possibilidade de intervir, segundo a abordagem de Creighton (1992) e Münster et al. (2017).

Assim, a colaboração relaciona-se com a construção de consensos, o que obriga a uma atividade de negociação, cedências e criação conjunta de novas soluções. Ou seja, na prática é algo que obriga a um processo propositadamente desenhado para esse efeito e que não ocorre naturalmente. Está muito além de uma mera comunicação ou explicação de uma decisão, obrigando a que se criem as metodologias para que as pessoas possam participar livremente e em igualdade, sem constrangimentos de poder. Normalmente uma dessas condições relaciona-se com o conceito de racionalidade comunicativa de Habermas (1981). Não basta juntar as pessoas numa sala e esperar que surja algo, um consenso e uma resolução. 

Assim, devemos ser críticos de quem mistura deliberadamente os termos participação e colaboração, especialmente quando servem para manipulação dos ditos participantes. Não esquecer o primeiro nível da escala de Arnstein (1969). 

Bibliografia:
Arnstein, S. (1969). A ladder of citizen participation. Jaip, 35(4), 216–224.
Creighton, J. L. (1992). Involving citizens in community decision making: A guidebook. Program for Community Problem Solving.
Habermas J. (1981), The Theory of Communicative Action: Reason and the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press.
Münster, S., Georgi, C., Heijne, K., Klamert, K., Noennig, J. R., Pump, M., ... & van der Meer, H. (2017). How to involve inhabitants in urban design planning by using digital tools? An overview on a state of the art, key challenges and promising approaches. Procedia computer science, 112, 2391-2405.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Racionalidade Ignorante: somos ignorantes porque queremos

Na era da informação massificada, facilmente acessível e em tempo real, porque grassa tanta ignorância? Krek (2005) avança com uma explicação, ao dizer que as pessoas tendem a ser “racionalmente ignorantes”. Com isto quer dizer que fazem uma seleção com base no esforço necessário para conhecer ou dominar um certo assunto ou atividade. Como esse esforço pode ser grande, longo e sem trazer qualquer garantia de sucesso, podemos optar por ser ignorantes. 

Homens lendo - Goya
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Men_Reading#/media/File:Hombres_leyendo.jpg

E isto tende a ser cada vez mais comum porque o mundo está cada vez mais complexo. Tanto porque o conhecimento científico avança e tentar dominar apenas uma pequena área do saber pode ser um esforço pesado, se não mesmo impossível, podendo levar a uma vida inteira de estudo e investigação sem se chegar a esse objetivo. Por outro lado, os nossos contextos sociais estão mais complexos. A própria realidade é de uma profunda complexidade por todo o mundo. Estamos rodeados de problemas complexos, que se podem definir como aqueles para os quais existem múltiplas soluções possíveis sem existir uma solução ótima clara (Innes & Booher, 2016). De notar que o ótimo depende sempre do critério de avaliação, e que hoje em dia existem critérios imensamente distintos, de indivíduos para indivíduos. A complexidade de valores é imensa e variada.

Tendemos então a ser ignorantes em determinados assuntos e a escolher outros para nos especializarmos. O tempo é limitado e as solicitações cada vez mais. O critério de seleção nem sempre se guia pela busca de conhecimento ou aperfeiçoamento. Muitas vezes é simplesmente uma escolha pelo que dá mais prazer, algo muito tipico de sociedades livres, hedonistas, consumistas e do pós-modernismo, em que cada um se configura e reconfigura ao seu bel-prazer. Na verdade, não é bem assim, ou não é assim algo que se faça tão facilmente apesar de ser possível, porque as estruturas sociais têm efeitos e implicam restrições, ainda que sejam cada vez mais fáceis estes processos de escolha. Estes fenómenos ocorrem em redes, potenciadas pela tecnologia que escapam às delimitações territoriais (Castells, 1996), num movimento que podemos ver explicado pelo estruturalismo de Giddens (1984), que nos diz que tanto somos influenciados pela sociedade como a influenciamos. 

Então estão criadas as condições para sermos ignorantes por opção, porque racionalmente assim decidimos. Poderia pensar-se que o futuro a humanidade seria uma era de conhecimento gerado pela liberdade e acesso à informação, mas provavelmente será apenas livremente ignorante. Parece absurdo, mas pode ser tudo reduzido a uma questão de liberdade. Se antigamente, fruto do pensamento humanista e iluminista, a humanidade queria libertar-se para saber, agora liberta-se para poder escolher entre o saber e a ignorância.

Referências bibliográficas:
Castells, M. 1996. The rise of the network society. The Information Age: Economy, society and culture. Vol 1. Cambridge, MA: Blackwell.
Giddens, A. (1984). The constitution of society. Berkeley: University of California Press.
Innes, J. E., & Booher, D. E. (2016). Collaborative rationality as a strategy for working with wicked problems. Landscape and urban planning, 154, 8-10.
Krek, A. (2005), Rational ignorance of the citizens in public participatory planning. In 10th Symposium on information- and communication-technologies (ICT) in urban planning and spatial development and impacts of ICT on physical space, CORP 05. Vienna University of Technology: Vienna.

sábado, 31 de agosto de 2019

10 anos do blogue "A Busca pela Sabedoria"

Parece incrível, mas o blogue a Busca pela Sabedoria Faz hoje 10 anos! Pouca importância terá para outras pessoas, mas para mim – Micael Sousa, o autor – é muito importante. Este blogue surgiu numa altura da minha vida em que precisava de respirar coisas novas, e quem diz respirar diz ativar o pensamento com novos assuntos. Isto surgiu depois de estar a trabalhar há 2 anos no ramo da engenharia, mas onde, na prática, pouca era a verdadeira engenharia que fazia. Não passavam de rotinas e desencadear hábitos já estabelecidos sem muita oportunidade para pensar e inovar, especialmente no que fosse além daquele restrito mundo profissional, mas baseado na experiência que no conhecimento sistematizado. 



Acredito que isto aconteça a mais pessoas. Terminam as vossas formações, em cursos que até vos deram prazer a fazer, e depois vão para o mercado de trabalho e encontram uma realidade que não vos estimula nem desafia, mas que vos faz cair um peso sobre os ombros repressivo. Foi assim que me senti, porque sempre gostei da novidade de aprender coisas novas e cruzar conhecimentos, tal como de admirar e seguir apenas aqueles que merecessem respeito pelo que eram e faziam, não por qualquer outra convenção ou construção social fruto do acaso. 

Ao longo de 10 anos o blogue serviu de repositório para aquilo que ia descobrindo, aprendendo, estudando, projetando e estudando – repeti estudar porque foi no estudo formal que descobri um escape nos múltiplos cursos superiores que fui fazendo enquanto trabalhava. São bem percetíveis essas etapas e estados nos temas que dominam certos períodos de produção do blogue. Houve épocas especificamente dedicadas ao cinema, a filosofia, arte, política, património, ambiente, planeamento espacial e jogos de tabuleiro, isto só para citar alguns temas dominantes. O blogue sempre serviu como exercício de autorreflexão e estruturação do conhecimento. Não que seja uma fonte de conhecimento infalível, nada disso, mas porque é uma busca para o tentar ordenar conhecimento. Não são os textos mais úteis, mais inteligentes, com mais sabedoria, mas são aqueles que me foram possíveis e importantes de fazer nestes exercícios camuflados, nesta busca. 

O ritmo de produção já não é o que era. O blogue já vai longe das quase 1.000 visualizações por dia que chegou a atingir em certos momentos, até porque tenho cada vez menos tempo, mas solicitações e até mais blogues e vblogues para alimentar. É verdade, até pelo youtube tenho andado, principalmente para falar sobre jogos de tabuleiro modernos, enquanto arrisco, por vezes, uns textos sobre conteúdos aqui abordados. No fundo são mais exercícios de quem não teme o ridículo ou a produção de qualidade duvidosa porque sabe que isso é imensamente útil e necessário para se sentir vivo enquanto segue um caminho dinâmico rumo a alguma coisa de melhor. 

Então passaram 10 anos, mais de 650.000 visualizações, 452 textos e quase um milhar de comentários. A vontade é continuar, sempre ao ritmo próprio de cada momento da minha vida, porque isto dos blogues são coisas que fazem sentido por serem pessoais.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Variações no cinema português: um filme sobre António Variações

Tenho de admitir que tenho sempre uma certa desconfiança dos filmes portugueses. Mero preconceito, especialmente porque não lhes dou assim tantas oportunidades para me surpreenderem. Ontem fui ver “Variações”, que retrata a vida de António Variações, um cantor muito especial da história da música portuguesa. 

Fonte da imagem: https://mag.sapo.pt/cinema/filmes/criticas/variacoes-estar-alem-da-criatividade-para-revelar-antonio-ao-mundo

António Variações era um excêntrico, com uma personalidade com uma estravagância que irradiava em tudo o que fazia, especialmente na música, a sua paixão. Barbeiro de profissão, e cantor por vocação, ainda que sem formação, falamos de um homem que quebrava as regras e convenções sociais. Andou pelo mundo, mas não podia escapar à sua alma lusa. As suas músicas eram polémicas, ousadas e muito à frente do seu tempo, porque no fundo eram mesmo do seu tempo mas feitas com liberdade. Morreu cedo, de broncopneumonia muito provavelmente relacionada com o HIV, numa época em que não havia tratamentos adequado para essa calamidade. A sua homossexualidade, quase de forma inexplicável, acabou por ser aceite pela sociedade portuguesa da época, ainda fortemente conservadora. Os anos 80 foram um período de liberdade em Portugal, resultado da estabilidade que a jovem democracia ganhava. Variações, apesar da sua curta carreira e fama, fez parte desse movimento cultural. Hoje não duvidamos disso. António Variações era único, dificil de classificar no estilo e no tipo de música que criava. 

Este breve resumo pretende enquadrar a riqueza desta personagem e o seu lugar na história recente de Portugal. Ou seja, havia mais do que conteúdo para fazer um filme de qualidade, embora os filmes baseados em factos reais possam ser desinteressantes, pois a criatividade fica sempre condicionada. Neste caso, conhecer Variações é por si um ato de inspiração criativa, especialmente pela forma como o filme foi feito. Através desta longa metragem conhecemos a vida de António Ribeiro, que adotaria o nome de António Variações. Conhecemos o contexto social dos anos 50 no Portugal Rural, de finais dos anos 70 e inícios de 80 em Lisboa. Percebemos como foi o processo criativo deste autodidata e o mundo da música na época. Somos introduzidos à vida noturna e também, de algum modo, à comunidade gay de então. 

Mas mais que tudo isso. O filme é forte. É lento quando necessário, mas também ritmado e repleto de música interpretada pelo próprio protagonista, o que deve ter sido um enorme desafio. É magnificamente interpretado por Sergio Praia como António Variações e por Filipe Duarte como Fernando Ataíde, que encarnam uma relação amorosa de forma credível e repleta de emoção, algo que não terá sido fácil de fazer, tendo em conta toda a carga social e de preconceito associados às relações homossexuais, que por vezes são abordadas de forma incompetente, transformadas e retratadas de forma pouco digna, em situações de gozo e de ridículo. Guarda-roupa, ambientes, cenários, tudo feito com qualidade. Realização e produção irrepreensível, ao nível do que se faz de bom noutros países do mundo. João Maia está de parabéns! Trata-se de um filme tecnicamente rigoroso, mas passível de ser apreciado pelo grande público. 

Não estava com grandes expetativas, confesso, mas Variações emocionou-me. Era uma terça-feira e o filme estava em exibição há vários dias. Só consegui bilhetes para a primeira fila, o que é impressionante para um filme português. Provavelmente seria sempre um chamariz pela vida da personagem retratada e pelo sucesso que as suas músicas ainda hoje têm. Apesar disso a concretização não dececiona, pelo menos a mim não desiludiu, naquilo que foi, a meu ver, um dos melhores filmes portugueses feitos nos últimos tempos.

domingo, 28 de julho de 2019

Aprender sobre marxismo com o filme: O Jovem Karl Marx

O Jovem Karl Marx é um daqueles filmes que toca no género documental. Embora com elementos romanceados, para criar dinâmicas na narrativa que garantam o entretenimento dos espetadores, tem muito mais que isso. As personagens desempenham muito bem os seus papeis, no sentido em que conseguem entrar na complexidade das relações humanas, que vão ocorrendo em múltiplas línguas. Marx e Engels são bem encarnados, embora de forma a que nos mereçam uma simpatia que pode estar amplificada. Mesmo assim, o seu idealismo está patente, não no idealismo filosófico do termo, mas como pessoas que seguem ideais de forma apaixonada, apesar de as querem tornar científicas, enquanto arriscam múltiplas aventuras físicas e intelectuais. 

Fonte da imagem: https://filmspot.pt/filme/le-jeune-karl-marx-400020/

Ensinar a doutrina marxista não é fácil. Tenho passado por essa experiência sempre que alguém me pede ajuda para os exames nacionais de História A de 12.º Ano. Compreender o marxismo é uma daquelas coisas essenciais para compreender a história do século XX e quem sabe dos seculos seguintes também. Isto a propósito do filme, porque aí se explicam as relações tumultuosas de Marx com os restantes socialistas, a quem chamava utópicos. É um facto curioso, pois tantas pessoas criticam hoje o comunismo por ser solidamente utópico. No entanto a dialética materialista ou socialismo cientifico desenvolvido por Marx continuam a ser imensamente importantes. São incontornáveis, pois temos de compreender os contributos de Marx para a sociologia, economia e ciência política. Novas formas de marxismo continuam a ser desenvolvidas, e mesmo os críticos têm inevitavelmente de o citar para ir além dele, enquanto o tenta refutar. 

Em O Jovem Karl Marx assistimos ao processo de construção do pensamento marxista, que foi o primeiro a dizer que o modo como os indivíduos vêm a sociedade depende da sua posição histórica e social. Parece obvio, mas na altura não era. Vemos também as questões da exploração dos operários, no período anterior às revoluções que se iniciaram em 1848 e que iriam alimentar nacionalismos, lutas por igualdade e liberdade pelo mundo fora nas décadas seguintes. Esse período seria conhecido como a primavera dos povos. Embora no filme me pareça que a importância do manifesto do partido comunista seja exageradamente associada às revoluções de 1848. Mas isso ajuda a perceber a importância dos novos movimentos socialistas inspirados em Marx, que iam além dos idealismos dos socialismos ditos utópicos, porque lhes faltava uma filosofia de base sólida e soluções para o futuro. Marx não se contentava em identificar as injustiças da sua época. 

A filosofia marxista provou ser tão sólida que ainda influencia o mundo académico e político, enquanto que os outros socialismos, à exceção da vertente democrática, converteram-se em curiosidades excêntricas, embora alguns tentem ser reinventados – caso do anarquismo em algumas formas de democracia direta e deliberativa  A personagem de Marx no filme vive entre constantes conflitos com os restantes pensadores e a busca pelo conhecimento, ou não defendesse uma solução revolucionária, inevitavelmente violenta, no processo da luta de classes pela apropriação dos meios de produção, que era de onde vinha o poder político e também todas as injustiças de classe que queria derrubar. Marx vive obcecado pelo capital enquanto objeto concetual de trabalho, enquanto tem dificuldade em o reunir para sobreviver com a sua família. Não fosse Engels, na sua situação social e económica paradoxal, dificilmente Marx se tinha transformado na importância que hoje tem.

Penso que o filme permite introduzir todas estas coisas, através de bons desempenhos dos autores, cuidado na apresentação dos conteúdos que podem ser complexos, mas com ritmo e ação num contexto de época credível.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Uns comboios diferentes que trazem viagens inesquecíveis para aprendermos

Philippe Gougler é um jornalista e documentarista francês com uma extensa carreira, mas que nos tem chegado a Portugal de comboio, através da série de documentários “Des trains pas comme les autres” , exibidos na RTP2 com o nome “Inesquecíveis Viagens de Comboio”. Esta série tinha começado originalmente em 1987 na Antenne 2, mas foi recuperada e reformulada em 2011 pelo canal France 5, já como o atual apresentador e coautor. 

Philippe Gougler
Fonte: https://www.france.tv/france-5/des-trains-pas-comme-les-autres/saison-6/655355-zimbabwe-zambie.html
Em cada episódio desta série sobre comboios o apresentador, que escreve também os textos para o programa, segue “sozinho” pelos cominhos de ferro do mundo. O tema dos comboios, das estações e dos seus percursos serve para explorar as sociedades e culturas humanas contemporâneas. É uma forma de aprendermos história, geografia e cultura enquanto estamos no sofá a ver os comboios deslizar sobre os carris. Podemos encontrar curiosidades sobre o funcionamento dos comboios, dos sistemas de transportes, das cidades e das culturas de todo o mundo. A viagem de comboio até um certo sítio serve habitualmente de mote para tratar outros conteúdos, como o património histórico, a gastronomia, sistemas políticos, natureza, ambiente, economia, etc.

Gougler parece fazer o programa com tanta paixão, e falar tão genuinamente e de forma interessada com as pessoas com que se cruza, que dificilmente deixamos de ficar também apaixonados pelos contextos relatados. A série está feita para parecer que as viagens seguem sem formalismos, mas obviamente tudo foi planeado no percurso. Somente algumas das conversas dependem do acaso, embora algumas claramente tenham sido combinadas ou escolhidas perante muitas outras que se devem ter revelado desinteressantes.

Este documentário mostra como se podem fazer programas generalistas, para os grandes públicos, mas mantendo os conteúdos, com o devido informalismo. Estas são viagens a não perder. 

terça-feira, 9 de julho de 2019

One Punch Man e a nostalgia do Dragon Ball

Volto aqui no blogue a um tipo de texto mais opinativo e pessoal. Para a minha geração a exibição do Dragon Ball na SIC foi algo de incrivelmente marcante. Hoje andamos já perto dos 40 mas este desenho animado da escola nipónica da Manga continua a mexer connosco. As referências continuam lá, tendo sido uma série que ajudou a construir a nossa identidade coletiva. 

Dragon Ball Z
Desde então poucos foram os desenhos animados que vi assim de enfiada. Acredito que isso tenha acontecido com muitos dos potenciais e reais leitores deste texto. Cheguei a ver outras criações Manga mas nenhuma teve aquele impacto, provavelmente pela idade que tinha na altura da exibição da versão dobrada em português e porque foi assim a série que demonstrou que tornou consciente do que se fazia lá para os lados do sol nascente. A partir de aí jamais esqueceria o estilo típico Manga, que nos provava que não havia nada de errado em sermos adultos e apreciarmos desenhos animados.


Exposição Manga-Tokyo in Paris
Fonte da Imagem: https://www.japantimes.co.jp/culture/2019/01/06/general/second-chance-japans-manga-museum/#.XSPL1PZFwic







No final do ano de 2018 estive em Paris e aproveitei para ir ver uma exposição sobre o universo Manga e a sua relação com a cidade de Tóquio. Foi surpreendente, pois não ia com grandes expectativas. A exposição era simplesmente fabulosa para quem gosta de Manga e de Urbanismo. Através das criações Mangas contava-se a história do Japão e de Tóquio. Maquetes gigantes da cidade com projeções de cenas de filmes clássicos manga. A cultura de animação japonesa influenciava a cidade e a cidade influenciava estas criações, conseguido através de exposição de obras originais, recriações e projeções num grande armazém da arquitetura do ferro. Até o primeiro Godzila lá estava. 

Esta visita trouxe-me a vontade em voltar a entrar no universo Manga. Por isso decidi ver algo que me tinham recomendado. Comecei a ver o One Punch Man e fiquei aparvalhado! Sabia a Dragon Ball, com mais humor, sarcasmo e repleto de sátiras ao próprio universo Manga. Genial! Devolveu-me anos de alegria esquecida, que contrastavam com o estado de espírito do herói Saitama, que vivia em depressão por derrotar todos os adversários somente com um murro. 

One Punch Man
Por isso fica aqui a recomendação. Se gostaram de ver Dragon Ball nos anos 90 e se querem ver uma coisa nova, satírica e divertida então vão já a correr ver One Punch Man.

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Mecânicas nos jogos de tabuleiro modernos: quando a teoria não coincide com a prática

Existem imensas definições para o conceito de mecânicas de jogos, o que leva a várias confusões semânticas sobre o que significa afinal isso no contexto dos jogos, e ainda mais no âmbito dos jogos de tabuleiro modernos. 

Habitualmente usa-se o termo “mecânica” para descrever, de um modo vago, o que os jogadores fazem durante o decorrer de um jogo (Woods, 2012). Para Salen & Zimmernan (2003) uma mecânica é “a atividade de jogo essencial que os jogadores realizam recorrentemente num jogo”. Assim, para Woods (2012), segundo esses termos, a mecânica de jogo descreve a principal forma de interação funcional entre o sistema de jogo e os jogadores. Assim todos os jogos envolvem uma ou mais mecânicas pelas quais os jogadores influenciam o resultado de um jogo. Partindo deste princípio, Jarvinen (2009) definiu 40 mecânicas que são comuns em jogos (separando em mecânicas principais, submecânicas e mecânicas de modificação). 

Quarto em Nova York - Edward Hopper
Fonte: https://www.edwardhopper.net/room-in-new-york.jsp

Woods (2012) recorreu à lista das mecânicas apresentadas por Jarvinen e avaliou mais de 100 eurogames com base nelas, tendo chegado à conclusão de quais seriam as mais recorrentes e comuns na sua amostra: Votar; Evoluir; Ordenar; Procura de informação; Tirar; Trocar; Comprar; Submeter; Alocar; Construir; Leiloar; Movimento ponto para ponto; Colocar; Escolher.

Ao analisarmos esta lista não encontramos uma relação com as principais mecânicas identificadas pelos utilizadores e designers de jogos de tabuleiro modernos. Exemplo disso é a identificação feita por Yehuda Berlinger (2009) que apenas considera 6 mecânicas principais: Colocação de peças; Leilões; Trocar/Negociar; Alocação de trabalhadores/escolha de papel; Construir conjuntos; Controlo de área.

Nem sempre é fácil estabelecer uma relação entre as mecânicas identificadas por investigadores e académicos como Jarvinen e designers/jogadores de Jogos de tabuleiro modernos como Berlinger. Em alguns casos, mecânicas como a construção de conjuntos (set colection) e o controlo de área (área control) podem ser entendidos como objetivos em vez de mecânicas (Woods, 2012), sendo apenas exemplos paradigmáticos. Isto levanta uma serie de problemas para quem pretende enveredar pela investigação na área dos jogos de tabuleiro modernos e esteja envolvido no hobby, dificultando também análises de jogos numa vertente mais formal. 

Uma das razões para esta confusão entre mecânicas e objetivos pode estar relacionada com a própria natureza dos jogos de tabuleiro modernos, com a tendência para a simulação e para as mecânicas se relacionarem diretamente com isso, sendo feitas e implementadas de modo realmente "mecânico" e físico, no sentido clássico do termo. Claramente precisamos de mais investigação nesta área, no entanto, mesmo que seja feita, nada garante que a comunidade de jogadores e designers as adotem posteriormente. 

Facilmente podemos transpor esta problemática para outras áreas além dos estudos dos jogos.

Nota: grande parte deste texto é uma descrição do livro “Eurogames: The Design, Culture and Play of Modern European Board Games”, que continua a ser a principal referência no estudo de jogos de tabuleiro modernos. 

Referências bibliográficas:
Berlinger, Y. (2009). The Modern Euroame Revolution. In Board Game Studies Colloquia XII, Jerusalem.
Järvinen, A. S. (2009). Games without Frontiers: Theories and Methods for Game Studies and Design.
Woods, S. (2012). Eurogames: The design, culture and play of modern European board games. McFarland.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Quando os jogos de tabuleiro eram rituais e manifestações religiosas: Senet e Jogo Real de Ur

Nos vestígios arqueológicos das civilizações da Suméria e do Egipto, naquelas que foram algumas das primeiras cidades do mundo, encontraram-se jogos de tabuleiro. 

Mas esses jogos não eram apenas diversão. Tanto na Mesopotâmia como no Egito os jogos assumiam um papel importantíssimo na vida social e religiosa, criando narrativas e dinâmicas de jogo que tinham leituras simbólicas, místicas e espirituais. Os jogos faziam parte dos rituais e doutrinas religiosas. No Egito descobriu-se o Senet e em Ur, na Mesopotâmia, o “Jogo Real de Ur”.  

Rainha Nefertari a jogar Senet
Pintura mural do túmulo de Nefertari, esposa de Ramses II
Fonte: https://www.sciencephoto.com/media/185929/view/queen-nefertari-playing-senet

O egiptólogo Peter Piccione propõe que o jogo Senet, que se traduz por “passar, servia de guia para a reflexão espiritual, enquadrada nas crenças de vidas após a morte da religião egípcia. Segundo esse investigador o jogo terá sido readaptado e interpretado pelos cultos religiosos como uma poderosa atividade narrativa. No jogo, que se baseava em movimentos de peças num tabuleiro, mas que desconhecemos as regras exatas, teria uma associação com a viagem que os mortos faziam, de como depois a sua vida era avaliada, e de como então poderiam atingir ou não a vida eterna se disso fossem dignos. Alguns dos jogos foram encontrados com motivos de decoração associados às etapas dos rituais funerários egípcios. Existem pinturas morais da rainha Nefertari a jogar este jogo, sozinha, provavelmente, simbolicamente contra a sua própria alma. Através desse jogo indicia-se que os jogadores poderiam analisar os seus próprios comportamentos, que os poderiam levar à condenação eterna ou à salvação. 

Jogo Real de Ur
Um dos 5 exemplares encontrados por Leonard Woolley em Ur. Hoje patente no British Museum
fonte: By BabelStone (Own work), CC0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=10861909


Já sobre jogo real de Ur sabe-se hoje como o jogavam os antigos sumérios. Pois nos anos 80 do século XX Irving Finkel, ao procurar nos arquivos do British Museum, descobriu registos das regras. Tratava-se de um jogo de corrida em que os jogadores tinham de levar as peças de jogo de um lado para o outro, lançando dados feitos de ossos de ovelha. Apesar de ser uma diversão, tratava-se de uma ferramenta de adivinhação do futuro. A cada casa associavam-se estados e situações que depois eram interpretadas para e pelos jogadores. 

Para ambos os jogos, que nos são apresentados por Tristan Donovam no seu livro “Its all a Game: the history of board games from Monopoly to Settlers of Catan”, o autor faz uma referência de como aleatoriedade e a sorte podiam ser vistas por estes povos antigos como manifestações místicas e formas de comunicação transcendentes, provavelmente uma forma dos mortos e dos deuses comunicarem com os jogadores.
Por isso, quando lançarem um dado, ou tirarem à sorte algo, lembrem-se que para muitas pessoas isso chegou a ser uma manifestação espiritual e religiosa. 

Referências bibliográficas:
Donovan, T. (2017). It's all a game: The history of board games from Monopoly to Settlers of Catan. Macmillan.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Introdução ao Planeamento Colaborativo

O planeamento colaborativo não é uma solução de planeamento pronta a aplicar. Digamos que são objetivos orientadores, e que existem então muitas metodologias nele inspiradas que então são possíveis de aplicar. Podemos dizer que o planeamento colaborativo se insere numa intenção e vontade de criar sistemas de planeamento mais inclusivos em que as pessoas e instituições podem participar e gerar em conjunto soluções geradoras de consenso ou então que atendam ao máximo a todas as complexidades e diversidade das atuais sociedades humanas. No fundo é uma espécie de demanda, pois considera-se que os resultados são melhores e mais justos se aplicados aos processos de planeamento. Há aqui algo de ideológico mas também de racional e direcionado para objetivos concretos e mensuráveis.

A Colheita - Bruegel
Fonte da imagem: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/435809
Filosoficamente, podemos dizer que se trata de um conjunto de metodologias, relacionadas com a construção social estruturalista avançada por Anthony Giddens, em que as comunidades constroem e adaptam as suas próprias estruturas sociais e com isso as estruturas de poder. Mas também com a abordagem da ação/crítica comunicativa de Jurgen Habermas, em que o modo de comunicar permite mudar a distribuição e mobilização do poder, o modo de fazer e organizar, criando novas realidades.

Então, de um modo muito simplificado, pegando no livro de Patsy Healy – Collaborative Planning”, podemos decalcar alguns dos requisitos para que esses sistemas metodológicos possam ser aplicados.
Esses sistemas de planeamento devem:
- Reconhecer a grande variedade de preocupações e exigências das pessoas e instituições, inerentes a diversidade dentro das atuais sociedades humanas;
- Reconhecer que muitos dos aspetos da governação das sociedades ocorrem foram dos sistemas formais de poder e administração;
- Favorecer a oportunidade e intervenção informal nos sistemas de governação local, regional e nacional;
- Promover a inclusão de todos os membros das comunidades políticas;
- Ser constantes e continuados, abertos a múltiplas formas de avalização e capazes de fornecer informação e respostas às questões dos cidadãos e instituições.
Esses sistemas de planeamento devem garantir recursos para:
- Que todos os membros das comunidades políticas tenham mínimos dignos de qualidade de vida;
- Que todos possam exercer ativamente a sua cidadania;
- Superar as barreiras de participação de alguns cidadãos e instituições, de acordo com as suas particularidades;
- Investimentos dos pequenos e grandes projetos definidos pelas comunidades;
- Redirecionar os efeitos negativos dos que são afetados por determinadas iniciativas políticas;
- Garantir que a informação prestada é de boa qualidade e está acessível a todos os membros das comunidades políticas. 

Nos sistemas de planeamento colaborativo é necessário implementar uma abordagem argumentativa durante os processos, garantindo:
- Que todas as preocupações e reivindicações de todos os cidadãos e instituições são tidas em atenção, encorajando a partilha de preocupações e compreensão entre todos, em vez de uma competição entre adversários;
- Todas as decisões tomadas pelos governantes têm de ser justificadas perante todos os membros das comunidades políticas;
- Todos os governantes devem dar boas razões para as decisões que tomam, considerando os diferentes modos de pensar, argumentar e compreender dos membros da comunidade política. 

Esta é apenas uma breve introdução aos requisitos das metodologias do planeamento colaborativo. Para saber mais é recomendável ler a obra aqui utilizada como referência, tal como algumas publicações mais atuais que aqui irei referi no futuro. 

Referências bibliográficas:
Healey, P. (1997). Collaborative planning: Shaping places in fragmented societies. Macmillan International Higher Education.

terça-feira, 16 de abril de 2019

Aprender sobre colaboração através do jogo do dilema do prisioneiro

A área de teoria de jogos, que tem muito mais que ver com matemática do que com a dimensão lúdica ou social dos jogos, tem sido nas últimas décadas uma área de estudos e investigação bastante ativa. Um dos casos de estudo recorrentes prende-se com o jogo do dilema do prisioneiro (JDP), especialmente na sua vertente interativa ou repetida, que prevê múltiplas jogadas seguidas. Através destes exemplos de estudos têm sido retiradas várias conclusões sobre o comportamento humano perante a tomada de decisão e os processos de colaboração. 

Prisoners Exercising - Van Gogh
Fonte:  https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vincent_Willem_van_Gogh_037.jpg

No fundo o JDP consiste, de um modo simplificado, num jogo de escolhas, em que dois prisioneiros são submetidos a escolhas de denuncia ou de colaboração com os demais prisioneiros para garantir que ninguém denuncia outrem. Pois se ninguém denunciar todos cumprem uma pena mais pequena. Mas se alguém denunciar isoladamente outro esse prisoneiro ganha o máximo benefício. Por outro lado, se todos denunciarem todos maximizam perdas, pois todos sofrem a pena máxima. Na forma interativa ou repetida podem ser estabelecidos padrões, havendo uma tendência de melhorar os benefícios da cooperação entre prisioneiros no longo prazo e em jogadas repetidas (Axelrod, 1980). No entanto, nada de isto invalida os conhecidos equilíbrios de Nash, que de uma forma simplificada se pode resumir como aquelas situações em que os jogadores deixam de querer alterar as suas estratégias por ficarem satisfeitos com os resultados obtidos (Vives, 1990).

Estas investigações continuam a ser desenvolvidas. A título de exemplo aqui ficam algumas constatações retiradas de diversos artigos científicos recentes:
• Dal Bo (2005) considera que a cooperação aumenta na medida em que a probabilidade de continuação do jogo aumenta, e que a cooperação é maior em jogos de duração indefinida que nos jogos de duração finita;
• Duffy & Ochs (2009) comprovaram que a cooperação no JDP é maior quando os pares se conhecem e passaram por vários jogos.
• Dal Bó & Fréchette (2011) geraram evidências de que a experiência no jogo desempenha um papel importante no surgimento de cooperação em jogos de DP. Descobriram que com experiência, o efeito da perda total tem um papel importante no fomentar da cooperação, da confiança.
• Lugovskyy et al. (2017) encontraram evidência de menor cooperação na última ronda do jogo. 

Estes são apenas alguns exemplos, entre muitos artigos recentes produzidos, sobre as leituras dos comportamentos dos jogadores em casos e variantes do dilema do prisioneiro (DP). São exemplos de como os jogos, embora aqui estejamos perante um problema matemático e não sobre um jogo lúdico, podem ser utilizados para fins sérios que extravasam os jogos e com os quais podemos estabelecer múltiplos paralelismos. Podemos aprender muito com isso.

Conseguimos identificar aqui algumas condições que podem contribuir para o estímulo dos processos de colaboração. A proximidade, conhecimento e interação entre as pessoas, o convívio em atividades mútuas, ajudam a gerar confiança que leva à cooperação. Salienta-se também a importância da demonstração e consciência dos efeitos de perdas globais da não cooperação ao longo do tempo. A continuidade dos processos de interação é uma necessidade para o estabelecimento da cooperação, de preferências com as mesmas pessoas.  

Tal como noutras abordagens, a cooperação e colaboração não ocorrem por milagre. Desenvolvem-se porque trazem benefícios coletivos e porque existem condições sociais para que isso possa acontecer.

Referências bibliográficas:
Axelrod, R. (1980). Effective choice in the prisoner's dilemma. Journal of conflict resolution, 24(1), 3-25.
Dal Bó, Pedro, 2005. Cooperation under the shadow of the future: experimental evidence from infinitely repeated games. Amer. Econ. Rev.95, 1591–1604.
Dal Bó, Pedro, Fréchette, Guillaume, 2011. The evolution of cooperation in infinitely repeated games: experimental evidence. Amer. Econ. Rev.101, 411–429.
Duffy, John, Ochs, Jack, 2009. Cooperative behavior and the frequency of social interaction. Games Econ. Behav.66, 785–812.
Lugovskyy, V., Puzzello, D., Sorensen, A., Walker, J., & Williams, A. (2017). An experimental study of finitely and infinitely repeated linear public goods games. Games and Economic Behavior, 102, 286-302.
Vives, X. (1990). Nash equilibrium with strategic complementarities. Journal of Mathematical Economics, 19(3), 305 321.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Pensar constantemente nos custos de oportunidade seria uma loucura?

O conceito de custo de oportunidade é algo essencial para qualquer análise económica, mas muito pouco comum nas nossas decisões do dia-a-dia. Sabemos que os modelos económicos têm dificuldades em simular todas a realidade, pois são simplificações da realidade para mais fácil definição e análise. Nessas simplificações é dificil replicar, entre outras coisas, a complexidade e imprevisibilidade do comportamento humano. Normalmente, os modelos económicos, ditos clássicos, consideram que os atores dos sistemas económico tomam as melhores opções, as mais racionais. Mas os economistas, munidos dos seus modelos, sabem que isto não é verdade. Eles, mais que ninguém, sabem das limitações dos seus modelos.

Christina’s World (1948) – Andrew Wyeth

Se adotássemos decisões sempre racionais, e munidos de todas as informações necessárias, teríamos de estar sempre a considerar os custos de oportunidade, de tudo o que fazemos. Teríamos de ter alternativas constantes para tudo e conhecer as possibilidades análogas ou outras possíveis de serem empreendidas. 

Os custos de oportunidade podem ser definidos como tudo aquilo que nos custa, ou perdemos, ao não investirmos ou direcionar os nossos recursos para outras atividades que seriam mais rentáveis. Ou seja, imaginem estar constantemente a analisar tudo o que fazem de modo a escolher aquilo que vos traria mais benefícios. E não se podem esquecer que nem todos os benefícios têm forçosamente de ser monetários. Seria desejável ter sempre este conhecimento na hora de decisão, mas seria altamente impraticável. Primeiro porque obrigava a massivas quantidades de informação e de cálculos. Gastaria imenso tempo. Depois porque nos obrigava a atribuir valor a tudo, incluindo coisas que não têm valor definido ou que podem ser imensamente subjetivas. Por exemplo, quanto vale observar uma paisagem?

Não desesperem, pois existem métodos e técnicas para considerar e contabilizar bens e atividades associadas a bens sem valor de mercado. Talvez seja um tema para um próximo texto.

Em resumo, fica dificil estarmos sempre a fazer análises dos custos de oportunidade de tudo o que fazemos. Mas é imensamente útil ter esta noção em mente, nem que seja para valorizar certas coisas que fazemos e que inicialmente até podemos nem valorizar na devida conta. Podemos não saber o valor exato, mas podemos ter a certeza que têm algum valor. O certo é que existe sempre, no mínimo, um valor de comparação. Algo como eu estar a escrever este texto pelo simples prazer de o fazer, em vez de estar a escrever outra coisa que eventualmente me pudesse dar um rendimento. E quem fala em escrever poderia falar em muitas outras atividades alternativas consumidoras do meu tempo. Já sabem, o tempo habitualmente é dinheiro, mas de valor incerto e variável. 

Referências de apoio para saber mais sobre custos de oportunidade:
Buchanan, J. M. (1991). Opportunity cost. In The world of economics (pp. 520-525). Palgrave Macmillan, London.
Frederick, S., Novemsky, N., Wang, J., Dhar, R., & Nowlis, S. (2009). Opportunity cost neglect. Journal of Consumer Research, 36(4), 553-561.
Kurzban, R., Duckworth, A., Kable, J. W., & Myers, J. (2013). An opportunity cost model of subjective effort and task performance. Behavioral and Brain Sciences, 36(6), 661-679.
Palmer, S., & Raftery, J. (1999). Opportunity cost. Bmj, 318(7197), 1551-1552.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Algumas definições sobre o que é um Jogo

A área de estudos dos jogos é neste momento um campo de investigação académica muito ativo. O modo como se criam, desenvolvem e aplicam jogos tem muito para ser estudado, mais ainda se quisermos analisar o que está para além dos jogos, com tudo aquilo que implica a sua utilização social e individual. O meta-jogo, pode muito bem ser considerado uma nova área da filosofia. Muito provavelmente voltarei a este tema, mas para já dedico este texto ao compêndio de algumas definições do que é um jogo, com base na obra de Katie Salen e Eric Zimmerman.



Os tópicos que se apresentam de seguida são transcrições e traduções do trabalho dos autores anteriormente referidos, que por sua vez citam os principais pensadores que se dedicaram a definir os jogos ou a referir características dos jogos. Ficam de seguida alguns desses excertos:
  • David Parlett distingue entre jogos formais e informais: “Um jogo informal é apenas um jogar indireto, algo que as crianças fazem. Um jogo formal tem uma estrutura definida por meios e fins.”
  • Clark C. Abt: “Um jogo é um contexto com regras em que adversários tentam ganhar objetivos.”
  • Johann Huizinga, que não distingue o jogar do brincar, diz mais ou menos isto sobre os jogos: “Brincar/jogar é uma atividade livre situando-se fora da vida comum por não ser séria, mas ao mesmo tempo envolve o jogar profundamente e intensamente.”
  • Roger Caillois descreve que jogar é: “Livre, um ato à parte, incerto, não produtivo, governado por regras, e uma atividade “faz de conta”.”
  • Bernard Suits: “jogar um jogo é o esforço voluntário para ultrapassar um obstáculo desnecessário.”
  • Chris Crawford identifica quatro qualidades nos jogos: “Representação, interação, conflito, segurança. 
  • Greg Costikyan: “Um jogo é uma forma de arte em que os participantes tomam decisões de modo a gerir recursos através dos elementos dos jogos para perseguir um objetivo.”
  • Elliot Avedon & Brian Sutton-Smith: “Os jogos são um exercício de sistemas de controlo voluntário, em que existe concorrência entre poderes, confinados por regras de modo a produzir um resultado desequilibrado.”

Por fim importa apresentar a definição dos próprios autores, de Katie Salen e Eric Zimmerman, que resulta de uma análise crítica das anteriores definições e dos seus próprios contributo: Um jogo é um sistema em que os jogadores se envolvem num conflito artificial, definido por regras, que permitem um resultado quantificável.”

O livro em que se baseiam estas informações “The Rules Of Play: Game Design Fundamentals” é um livro profundo, repleto de informações, com a informação devidamente sistematizada numa abordagem académica, mas que pode ser um precioso auxiliar para a prática de design de jogos.

Referências bibliográficas:

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

A fome dos Pardais na china de Mao Tsé-Tung e ignorância da ideologia

Mao Tsé-Tung conseguiu, com os seus camaradas, depois de uma longa guerra civil e dos efeitos da ocupação japonesa durante a 2.ª Guerra Mundial, implementar um regime comunista na China. Em 1949 Mao consegue juntar a presidência do partido comunista chines à da própria china. Intitulava-se como o Grande Timoneiro, implementando um regime totalitário onde o culto da personalidade do líder foi muito forte. Mao era, acima de tudo, um ideólogo e um doutrinador, tentando utilizar os ensinamentos marxistas para modernizar a China, numa relação nem sempre de cooperação com a URSS.

Poster da campanha "mata um pardal" - autor desconhecido

A China que Mao Tsé-Tung conquistou em meados do século XX ERA esmagadoramente rural e atrasa do ponto de vista tecnológico, a nível de desenvolvimento quase medieval, especialmente nas zonas rurais. Durante a década de 50 os resultados da governação de Mao não foram os esperados, por isso implementou aquilo a que chamou “O Grande Salto em Frente”, entre 1958 e 1962. Para ele uma das prioridades seria acabar com as 4 pestes: os ratos, moscas, mosquitos e pardais. Aos ratos e moscas atribuía a culpa de doenças e da falta de higiene. Os mosquitos relacionavam-se com a malária, e os pardais com as perdas das colheitas. 

Assim, em 1960 popularizou-se a campanha “matar um pardal”, que incentivava as pessoas, especialmente nas áreas rurais a caçar e matar pardais nos seus tempos livres. Foi uma matança enorme, que quase exterminou todos os pássaros da china. Mas ao eliminarem os pardais e muitas outras aves, eliminaram também os principais predadores das pragas de insetos que atacavam também as colheitas agrícolas. A china sofreu uma fome massiva que causou a morte de dezenas de milhões de chineses. Há estimativas de terem morrido de fome pelo menos 20 milhões de pessoas por causa deste erro, embora outras estimativas sejam muito mais dramáticas.

Atribui-se a Mao Tsé-Tung a frase “Prefiro um vermelho a um técnico”. Isto revela o pensamento de Mao, a desconfiança perante os intelectuais, os técnicos e quem detinha conhecimento aplicado, algo que se sentiria mais fortemente na época da “Revolução Cultural”. A sua ideologia e a sua doutrina estavam acima de tudo, de todos os conhecimentos e saberes, especialmente os técnicos e académicos. O ditador irritava-se facilmente com a crítica e com todos aqueles que discordavam dele. Foram várias as purgas e as perseguições. “O Grande Salto em Frente” foi um descalabro e Mao Tsé-Tung foi forçado a afastar-se do governo em 1962. Mais tarde, em 1966 voltaria ao poder, munido do seu “livro vermelho”, que era um compêndio de várias fases da sua autoria, pronto a fazer a famosa “Revolução Cultural” e que rapidamente passaria do ferver ideológico ao marasmo social. A supressão e afastamento da influência dos membros mais cultos, esclarecidos e conhecedores da vida ativa chinesa, substituídos assim pelo movimento popular miliciano da Guarda Vermelha, composta por fanáticos que se mostravam incompetentes nos assuntos da governação e produção, voltou a estagnar novamente o desenvolvimento do país. Essa tendência só se alteraria posteriormente com o retorno de Deng Xiaoping a partir de meados dos anos 70, que iria abrir a china e a sua economia ao mundo, mas mantendo o domínio do partido comunista chinês. 

Este episódio da história universal, tão estranho que quase parece uma ficção, demonstrou os efeitos catastróficos que podem surgir das políticas públicas dirigidas apenas pela ideologia política, sem recurso a conhecimentos técnicos e científicos. Foram eventos desta natureza que desacreditaram e continuam a desacreditar a ideologia política. No entanto, ainda assim, conhecemos casos de líderes políticos que continuam a lutar por convicções pessoais, sem demais fundamentos para além dos seus sistemas de crenças. 


Referências bibliográficas:


Li, W., & Yang, D. T. (2005). The great leap forward: Anatomy of a central planning disaster. Journal of Political Economy, 113(4), 840-877.

Peng, X. (1987). Demographic consequences of the Great Leap Forward in China's provinces. Population and development review, 639-670.

Roberts, J. A. (2011). A history of China. Macmillan International Higher Education.

Saada,  Philippe (2017) Mao, le père indigne de la Chine moderne, In Les coulisses de l'Histoire.
Cinétévé & Arte



quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Hitler não foi um génio militar e a Bomba Atómica não derrotou os Japoneses: uma série de documentários franceses

Neste momento estão novamente a ser exibidos alguns bons documentários na televisão portuguesa, tanto em canais livres e pagos. Podemos ver regularmente documentários nos vários canais da RTP, especialmente na RTP2, ainda que fosse desejável haver mais. Mas parece que o Canal de História, ainda cheio de "reality Shows", também parece querer diversificar e voltar a ter documentários de história. Veremos se realmente as políticas de programação mudam para algo que sejam efetivamente conteúdos de relevância histórica ou se foi apenas uma exceção. Um desses exemplos é a recente série de documentários de 2017, de origem francesa, produzido pela Cinétévé & Arte, com o nome original de Les Coulisses de l’Histoire e traduzido para português por “História Revelada”. 

"Sempre que partires uma noz pensa em Hitler" - Office for Emergency Management. War Production Board. (1942-1945)

No primeiro episódio, realizado por Christiane Ratiney, aborda-se o mito de Hitler ser um génio da estratégia militar. No documentário defende-se essa tese, de que Hitler foi de facto um estratega militar amador e que cometeu erros crassos, uma vez que na hierarquia militar nunca tinha sido oficial nem tido qualquer formação nessa área tão específica e complexa. O mérito das conquistas militares deveu-se, em grande parte, aos generais da influente escola prussiana, desde Frederico o Grande, ao pensamento de Von Clausewitz e pela prática das guerras estratégicas desencadeadas com sucesso durante o século XIX, que permitiram construir o império alemão pela direção política de Bismarck. Mesmo o conceito de “Guerra Relâmpago” e o sucesso incrível da vitória sobre a França dependeu do Marechal Erich von Manstein e não de Hitler, que soube aproveitar a superioridade do seu equipamento bélico e treino militar da Wehrmacht. Quem venceu foi o Plano Manstein, cujo o sucesso surpreendeu Hitler, até porque teve falhas, ao ponto de se ter gerado um massivo engarrafamento de veículos alemães que poderia ter culminado num desaire total por falta de planeamento. E a vitoria teria sido retumbante perante os britânicos, que depois de estarem cercados apenas conseguiram evacuar o seu exercito em Dunquerque por culpa do Fuhrer. Isto devido às hesitações amadoras de Hitler, que não decidiu rapidamente o que fazer quando todos os generais pediam para que o ataque fosse incisivo e rápido, de forma a tentar forçar a rendição da Inglaterra, algo que Carl Von Clusewitz seguramente aprovaria. 

A operação Barbarossa, de invasão da URSS, foi uma sequência de erros tomados por Hitler, entre eles a decisão de cercar Estalinegrado e forçar a cidade à rendição em vez de avançarem rapidamente pela sua conquista, tal como a hesitação em avançar para Moscovo, temendo o desfecho que culminou na derrota de Napoleão em solo russo. Tudo isso deu tempo, numa frente excessivamente alargada, para que os Russos se organizassem. Hitler, convencido da sua superioridade tendia a subestimar os inimigos, algo que se pode comprovar nos registos dos seus generais, ao ponto de no final da Guerra ter assumido ele mesmo o comando militar, achando-se mais competente que os seus generais. 

Segundo os autores do documentário, a versão de que Hitler seria um génio militar teria sido alimentado pelos Aliados, para tornar a sua vitória ainda mais grandiosa, uma vez que Hitler passou rapidamente a ser o culpado de todos os males do mundo. Parece que as operações militares a leste, perante o poder massivo do exercito vermelho e de toda a mobilização cívica dos russos, enfraqueceu de tal modo o poder alemão que a derrota na frente ocidental também seria inevitável depois de 1942. No entanto essa versão não era conveniente para os EUA.

"Se trabalhares tanto e tão rápido como um japonês"  - Office for Emergency Management. War Production Board. (1942 1945)

No segundo episódio desta série de documentários, neste caso da autoria de Cédric Condon, refere-se à rendição do Japão. No qual se defende que não foram as duas bombas nucleares que forçaram o Japão à rendição incondicional, mas sim o avanço soviético que, depois de derrotada a Alemanha, mobilizava as suas forças para a Manchúria, no norte da China, e Coreia. Assim os japoneses, que ainda controlavam imensos territórios na china e sudoeste asiático sabiam que estavam encurralados e que a vitória não seria mais possível, pois quer os Soviéticos quer os Americanos estavam a planear operações de desembarque massivos em solo japonês. Os japoneses tentaram negociar com ambas as potencias a paz, mas os soviéticos não aceitavam a manutenção do governo imperial, tão importante para manter as tradições japonesas. Por outro lado, os Americanos aceitaram esse pedido e assim assinaram a rendição formal. Isto explica o continuar dos conflitos nos anos seguintes na Coreia e depois na Indochina, tal como a destabilização na própria China, enquanto o Japão se manteve estável e sua essência cultural milenar. Tudo indica que os generais Japoneses defendiam a guerra total até ao último soldado, mas que foi o imperador Hirohito a impor a sua autoridade e a decidir a paz com os EUA, não pelo efeito das bombas nucleares, mas por ser o modo de poder manter o trono. Assim, esta decisão Japonesa foi uma derrota para Estaline que não conseguiu ter influência no Japão, tal como algo muito útil para os EUA, que pouparam vidas dos seus militares, tal como contribuiu para construir o mito do poder do seu novo armamento nuclear. 

Mais que pensar que estamos perante verdades absolutas, esta série de documentários força-nos a ensaiar novas perspetivas e pontos de vista, daquilo que são os bastidores da história. Isto porque a história é sempre uma narrativa construindo pela mão humana, que nem sempre se aproxima da verdade, e sofre uma inevitável influência de outros poderes. Cabe-nos então cruzar conhecimentos, fontes e usar das nossas capacidades cognitivas para desvendar aproximações à verdade.

Referências:
Condon, Cédric (2017). Hiroshima, la défaite de Staline, In Les coulisses de l'Histoire. Cinétévé & Arte

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