terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Um ensaio filosófico sobre Liberdade e Tolerância

Depois das primeiras leituras e investigações ficou evidente que era difícil definir tolerância, pois é um conceito imensamente lato. Mais fácil seria tentar definir o seu oposto, que por exclusão de partes levaria então ao objetivo inicial.
Então qual a origem da Intolerância? Porque existe quem admita apenas uma via e opção quando o mundo é naturalmente diverso? Talvez a verdade seja a resposta. Talvez seja porque: havendo convencimento total que se conhece e detém a verdade, tudo o que é diferente só pode ser falso, deturpado, defeituoso e mau. Então importa também definir o que é a Verdade?
Isto não é um cachimbo - Magritte
 
Mas, de um ponto de vista filosófico, existem muitas definições de verdade.
Sócrates dizia: “que só sabia que nada sabia”. Uma certeza de verdade que duvidava de tudo, de todas as verdades, ainda que reservando uma para si. Seria o início do individualismo da verdade? De que para qualquer verdade há pelo menos uma crença inicial?
Platão aparentemente simplifica, diz: “o discurso que diz as coisas como são é verdadeiro, e o que as diz como não são é falso”. Mas como sabemos como são as coisas? Temos aqui o conceito de teoria da verdade tradicional, que define a verdade como assente em juízos que resultam de sistemas de crenças ou verdades anteriormente assentes.
Depois Aristóteles complica quando dizia: “Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, ao passo que dizer do que é que é, e do que não é o que não é, é verdadeiro”. Mas como sabemos o que é e o que não é? Caímos novamente na necessidade de uma crença inicial da verdade?
Destes pensadores, especialmente de Aristóteles, herdamos a noção de verdades lógicas, que estão na origem da razão. A verdade obtinha-se através da correspondências e conjugação de juízos verdadeiros, em preposições verdadeiras, para chegar a verdades. Mas essas verdades eram várias e, no extremo, até podiam ser contraditórias quando utilizadas em contextos mais complexos. Então não existia verdade mas sim verdades?
Posteriormente, durante a Idade Média, com o cristianismo a dominar a sociedade ocidental europeia, surge a escolástica. Os pensadores medievais conheciam as definições dos filósofos clássicos. Muniram-se da sua teologia, da sua fé, e remeteram para Deus a origem das verdades primeiras e das verdades eternas. A partir dai seria fácil definir todas as restantes verdades e falsidades.
Inúmeros pensadores depois continuaram a desenvolver o conceito de verdade, afastando-se da solução teológica escolástica. Muitos seguiram por aquilo que mais tarde seria definido como o racionalismo e o experimentalismo, que ativamente contribuiriam para o método científico. Voltava a possibilidade das muitas verdades. Enraíza-se a teoria da verdade pragmática, em que é a demonstração prática e verificabilidade das hipóteses que leva à verdade. Então e as teorias e hipóteses indemonstráveis? Teríamos de voltar novamente atrás, à teoria das verdades primeiras e das verdades indemonstráveis, os pré-conceitos indiscutíveis?
Kant, por sua vez, introduziu o conceito de verdades necessárias, que eram então aquelas que não se obtinham através da experiência. Eram as verdades analíticas, em que o termo-perdicado é propriedade do termo-sujeito. Mas isto não resolveu nada no que toca à definição da verdade. Era apenas a constatação da trivialidade. Apenas demonstra que há certas verdades que não necessitam de verificação.
Novas teorias surgiram. De notar a noção a teoria idealista, com muitos adeptos entre os filósofos germânicos dos séculos XIX, com Hegel entre os mais conhecidos. Segundo essa corrente a verdade será aquilo que provinha das nossas melhores teorias. No entanto, mesmo sendo as melhores e mais desenvolvidas teorias não são isentas de falhas. Sabemos que uma coluna defeituosa pode deitar a baixo todo o templo.
Depois das tendências positivistas dos finais de século XIX, onde havia crença na capacidade infinita da razão e ciência humana - sendo aqui o termo crença aplicado propositadamente de forma irónica -, surge no início do século XX o relativismo. Se as bases da física se ligavam à teoria da relatividade, segundo Einstein, então tudo podia ser relativo, incluindo a verdade? Isto seria um paralelismo exemplificativo que encontraria ecos na filosofia e na definição de verdade.
Vários pensadores e filósofos da época alertaram para a falibilidade de tudo o que é humano, incluindo a ciência e as teorias do conhecimento. Assim desenvolve-se mais uma teoria de verdade, a teoria realista, em que se considera verdadeiro aquilo que, à luz das teorias mais cuidadosamente estabelecidas segundo padrões rigorosos de racionalidade, controlo de erros e experimentação sistémica, leva a que se definam probabilidades suficientes para se considerar que algo como verdadeiro. Ou seja, fica sempre a dúvida, mas reduzimos o erro e ensaia-se sempre uma justificação para a verdade, tendo sempre de admitir a sua falibilidade. Apesar da possibilidade de erro podemos tomar posições, evitando o fundamentalismo. Isto faz lembrar Bertrand Russell, segundo o qual: podemos ser incrédulos perante algo se as suas probabilidades forem reduzidas.
Heidegger consegue também acrescentar algo, ao ser mais original dizendo que “a verdade é a descoberta”, pelo que lhe dá um sentido dinâmico.
Depois de tudo isto cresce a possibilidade de haver muitas verdades, e não uma só. Talvez isso se fundamente noutra teoria da verdade, a teoria da verdade consensual, em que a verdade não se estabelece a partir da correspondência entre juízo e o real, mas resulta do consenso ou do acordo entre indivíduos de uma determinada comunidade ou cultura quanto ao que se considera aceitável ou justificável na sua maneira de encarar o real.
Com isso surgem outras questões: então e o que é o real? O real podia ser obtido através do recurso às teorias da verdade? Obteríamos muitos reais competindo entre si, e uns negando outros, defendendo que se muniam da verdade. Mas o real não será apenas aquilo que uma maioria considera como tal? A loucura nega o real. Consideramos louco apenas aquele que vive o real diferente da maioria.
Para continuar a definir verdade importa também falar de conhecimento, que é uma relação entre o sujeito e o que é conhecido, sendo impossível saber algo sem acreditar no que se sabe - era por isso que Sócrates, ao negar que nada sabia, admitia que sabia pelo menos isso. Ou seja, sem uma qualquer crença, mesmo que muito simples e primordial, não há conhecimento.  Sendo através do conhecimento da realidade que se chega à verdade, relembrando que a realidade é um conceito também dúbio que parece depender da perceção de uma maioria e da verificabilidade estatística, que deverá ter sempre as suas dúvidas.
Se tudo se baseia nessa crença inicial de que pelo menos sabemos que sabemos algo, muitas outras crenças servem para justificar a verdade e vice-versa. Reforço que não é força da convicção que torna verdadeira uma crença, mas as características do objeto em causa. Voltamos, invariavelmente, de novo ao conceito de verdade e realidade e da noção de que não existem verdades absolutas, apenas muitas mais ou menos probabilidades de o serem, que se obtém através da validação tendencialmente racional.
E somos sempre racionais? Não, não somos. Talvez nem devemos ser. Recorremos quase sempre a heurísticas, atalhos que nos fazem decidir por intuição, com base nos nossos pré-conceitos, experiências e conhecimentos. Não será errado fazer isto, pois seria impraticável estar constantemente a testar tudo e a ter de recorrer a procedimentos racionais de verificação e experimentação para tomar uma decisão. O problema será quando o fazemos, por comodidade, e consideramos que chegámos a verdades absolutas.
São as verdades absolutas que levam à intolerância, pois é delas que se nasce a intolerância para com aquilo que é diferente (as outras verdades).
Tendo de chegar a uma conclusão, parece-me então que a verdade absoluta é irreal, pois parecem existir muitas e não uma só. Se assim é, como concilia-las todas de modo a evitar conflitos? Idealmente seria adoptar uma atitude de abertura de espírito e tolerância. O limite dessa tolerância será a própria necessidade que a criou: a garantia da diversidade e liberdade, pois só em liberdade mantemos a possibilidade das múltiplas verdades. Então a tolerância surge da necessidade do convívio harmonioso das várias verdades. Só o fundamentalismo se pode opor a esta visão. Mas quando se afirma algo assim, absoluto, podemos correr o risco de seguir pelas mesmas tendências.
Sobre a tolerância também vários pensadores a abordaram, especialmente a partir do iluminismo, quando os ideais da razão surgiram para erradicar o obscurantismo. John Locke foi uma dessas forças construtoras, tendo centrado o seu tratado sobre a tolerância na religião, pois essa era, na altura, um dos principais veículos de opressão e condicionamento das liberdades individuais. Defendeu, em 1689, a separação de poderes entre o Estado e a Igreja. Dizia que o Estado devia garantir as leis naturais, a liberdade, a conservação e desenvolvimento dos indivíduos, os bens pessoais e coletivos, a construção social, a paz e a prosperidade comum. Isto fazia-se através da Lei. Já a Igreja seria a sociedade livre e voluntária, que nem corresponde a necessidade como a política, nem à obrigação como a lei natural. Ela nascia da necessidade de cada um assumir publicamente a sua fé, de o fazer em público e comum. Formava-se pelo livre acordo em professar e praticar a religião que cada um considera verdadeira e lhe salvará a alma. Essa salvação tem de ser pura e voluntária, caso contrário não terá sucesso. Assim, para Locke, a liberdade é um pilar fundamental, o direito e a tolerância os garantes disso. Tudo o que lhes seja estranho será má política e falsa religião.
O liberalismo de Locke foi aprofundado nos séculos seguintes. Surgiram políticos em melhoria constante. Mas essas construções não eram perfeitas, não eram verdades absolutas.
Stuart Mill, um outro grande pensador do liberalismo e principal arauto do utilitarismo, alertava recorrentemente para o perigo da “tirania da maioria”, com Tocqueville a alertar para o mesmo. No ensaio “Sobre a Liberdade” Mill tenta identificar a natureza e os limites do poder que a sociedade pode legitimamente exercer sobre o individuo. Esta posição permite denunciar como despótica uma democracia que, confundindo a maioria, ainda que unânime, com a vontade geral, esmague a individualidade.
Então, tendo cada ser a sua individualidade, tal só pode ser respeitado enquanto respeitar essa mesma distinção livre respeitar a diversidade alheia, lembrando sempre que a verdade pode ser mais que uma. Foi por isso que, consciente de que a individualidade tem ligação com a liberdade e que o homem vive em comunidade onde os individualismos podem gerar conflitos entre os seus membros (devido à individualidade própria de cada um deles), é importante a tolerância. Quando Voltaire disse “posso não concordar contigo, mas tudo farei para defender o teu direito a discordares de mim”, acabou por dizer quase tudo.
 
 
Referências bibliográficas:
  • Caillé, Alain.“História crítica da filosofia política e moral”. Verbo, 2005.
  • Galvão, Pedro (org.).“Filosofia – Uma introdução por disciplinas”. Edições 70, 2013.
  • Kaneman, Daniel .“Pensar, Depressa e Devagar”. Temas e Debates, 2014
  • Lobo, António.“Dicionário de filosofia”. Plátano Editora, 1991.
  • Locke, John. "Carta sobre a Tolerância”. Edições 70, 2014
  • Mill, Stuart. “Sobre a Liberdade”. Edições 70, 2006.
  • Palmarini, Massimo Piattelli. “A ilusão de saber”. Circulo de Leitores, 1997.
  • Tocqueville, Alexis de. “Da Democracia na América”, Relógio de Água, 2008.

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