terça-feira, 24 de junho de 2014

A economia serve para buscar a felicidade?

Existem imensas definições para caracterizar a economia. Se começarmos pela origem etimológica do termo (Oikos + Nomos = Casa + leis/costume/normas) concluímos que o termo pode ser incrivelmente vasto. Já desde a antiga Grécia filósofos e pensadores dedicaram atenção aos estudos da “economia”, ainda que com uma metodologia e abordagem muito distinta daquilo em que esta ciência (humana) viria a usar atualmente. Terá sido durante a Idade Moderna, com o mercantilismo, e depois na Idade Contemporânea com o desenvolvimento do capitalismo e revolução industrial, que o significado e método clássico de economia se terá definido.

Estúdio com crânio - Georges Braque

De um modo simplista poderia dizer-se que: a economia é a ciência humana que estuda os mecanismos de produção, consumo, distribuição e rendimentos de bens e serviços (sempre limitados) com vista à sua otimização. A definição é simples, e muito limitada, tendo em conta a sua abrangência, porque economia pode ser quase tudo, pois se pensarmos na origem etimológica do termo, será tudo menos simples definir o que são as regras (naturais e artificiais) da nossa casa (ambiente).
 
No entanto, encontrei recentemente uma possibilidade curiosa para o fim ou objetivo da economia que pode ajudar na sua compreensão e simplificação. Segundo o livro “Economia para totós”, a economia é a ciência que pretende otimizar o uso de bens e serviços para garantir o máximo de felicidade aos indivíduos. Não sei se isto é inocente ou não, mas não entra aqui a palavra lucro e acumulação de capital. É curiosa esta mudança, pois a essa “busca pela felicidade” os autores acrescentam também a componente ambiental, no sentido de que a “boa” economia será também a que garante sustentabilidade dos recursos. Ou seja, a economia será então a ferramenta que permite avaliar os recursos e bens, sempre escassos limitados, e organizar todo o sistema produtivo e distributivo de modo a garantir o que as pessoas pretendem, gerando felicidade e sustentabilidade ambiental.
 
Tudo isto pode ser ingenuidade, ou uma mudança de paradigma, especialmente relevante se pensarmos que vivemos numa altura em que se diaboliza a economia e os economistas. Será isto apenas uma ação de marketing, intencional ou não, dos economistas para defenderem a sua ciência - que não por acaso é humana -, tentando liga-la à causa ambiental, humanizando-a e modernizando-a perante o individualismo contemporâneo centrado na busca da felicidade individual?
 
Referência bibliográficas

domingo, 8 de junho de 2014

Uma Antologia Filosófica sobre o Trabalho

Começo já por avisar que este texto vai ser muito longo, pois é quase uma mini-antologia filosófica sobre o trabalho, embora possam faltar muitas teorias e pensadores. Então aqui vai.

De um modo geral, os antigos filósofos gregos desprezavam o trabalho físico. O trabalho, por surgir de uma necessidade física, era uma prisão, logo uma limitação e um atentado à liberdade. Só assim se compreende como nessas suas sociedades as elites intelectuais se tenham desenvolvido mantendo uma dependência tão grande do esclavagismo. Ou seja, a verdadeira liberdade só começava quando garantidas as necessidades mínimas, pelo que todo o trabalho que constituísse uma obrigação era para eles negativo. As atividades sublimes seriam as que não dependessem dessa obrigação básica, o que é contrário a toda a organização e estruturação laboral: contrária a horários, hierarquias, a responsabilidades definidas de produção e a vencimentos.


Angelus - Jean-François Millet
Por exemplo, para Platão, um artesão arriscava a falsidade, pois era um imitador da natureza (direta ou indiretamente), realidade essa que era também uma imitação da verdade, e não a verdade propriamente dita. Logo o trabalho, de criação e produção, era uma imitação de uma imitação, uma sequência de falsidades e defeitos replicados, em suma: um distanciamento da verdade evitável. A verdade e a beleza que só podiam ser atingidas através do imaterial, do conhecimento intelectual e do espírito. Esta visão teve impactos imensos na maior valorização posterior do trabalho intelectual face ao trabalho físico.

Aristóteles, por sua vez, distinguiu que a criação não era por si só negativa, pois não era uma imitação da realidade (que por sua vez era uma imitação da verdade – segundo a visão platónica). Para ele o artífice poderia remisturar a realidade, para atingir um trabalho benemérito. O artífice poderia criar o belo através da suar arte e engenho. Definiu assim quais os trabalhos que poderiam ser dignos, mas, de um modo geral, foi sempre a dimensão intelectual, onde a poética assumia muita importância, que continuou sendo a mais digna atividade do desenvolvimento humano.


Para além desta influência grega surge uma outra influência que marcará toda a nossa história: a cultura judaico/cristã. Será dos escritos sagrados fundamentais dessa corrente religiosa, seja em que versão for, que surge a ideia de um Deus trabalhador, que construiu o mundo. O mesmo Deus que, depois da desobediência de Adão e Eva – como os primeiros humanos –, os castigou com a expulsão do Paraíso, e dai em diante passando o castigo de depender do trabalho como forma de subsistência a toda a humanidade. Assim, toda a história das comunidades de origem judaico/cristãs centraram a sua cultura no trabalho, na noção de castigo divino, de obrigação até ao fim dos dias como algo incontornável, mesmo que essa noção negativa do trabalho estivesse apenas indiretamente presente na vida dessas comunidades, e da qual a nossa é herdeira.


Na época medieval o trabalho continuou a ser um sinónimo de penitência, basta relembrar que as classes privilegiadas - a nobreza - estavam proibidas de trabalhar, e que algumas formas de monaquismo visam o labor e a oração – ora et labora -como os únicos caminhos para a salvação, trabalhando o corpo e a alma. Pode-se dizer que foi São Tomás de Aquino quem nessa altura mais contribuiu para redefinir a ideia de trabalho, e de o expurgar de algum do seu valor negativo, reforçando que o trabalho poderia ser benéfico, incluindo até o comércio, quando desse frutos a toda a comunidade cristã.


Vários pensadores e filósofos, uns mais de ação intelectual outros geradores de novas realidades sociais – como por exemplo os iniciadores das cisões no cristianismo ocidental – foram desenvolvendo, por sua vez, pensando em toda a população e não apenas na vida dos mosteiros, a ideia de que o trabalho não era uma penitência degradante, mas uma forma útil de obter a salvação, e que a criação de riqueza poderia ser um sinónimo do bom trabalho do corpo e da alma. Não foi por acaso que Max Weber, no século XIX, relacionou o Protestantismo com o Espírito do Capitalismo, mesmo que outros se tenham servido de outros exemplo para relacionar o capitalismo com outras confissões religiosas e até outras razões.


Mas foi no século XVIII que se assumiu verdadeiramente a obtenção de riqueza como algo digno, e logo também do trabalho, contrariando muita da tradição cristã que abominava a acumulação de riqueza, fosse por que meio fosse. O principal autor conceptual, que redigiu essas ideias, foi Adam Smith. Para ele: “o trabalho era a única medida real e definitiva que poderia servir, em todos os tempos e em todos os lugares, para avaliar e comprar o valor de toda as mercadorias”. O trabalho constituiu-se como algo instrumental e abstrato, e a sua essência era o tempo. O trabalho não era senão aquilo que produzia riqueza. Para cientificar a noção de trabalho Malthus restringiu-o à produção de bens.


Voltando uns anos atrás, foi Locke que definiu o trabalho como símbolo da autonomia individual, na medida em que graças a ele o individuo se tornava capaz, pelo simples exercício da suas faculdades próprias, de satisfazer as suas necessidades negociando livremente o lugar que essas faculdades lhe permitiam obter na sociedade. O trabalho é então visto como uma capacidade da qual o individuo dispõe livremente e cujas condições de venda, estipuladas numa convenção resultante de um ato livre, negocia com um empregador. Deste modo surge a novidade da época: a liberdade do trabalhador decidir a quem presta os seus serviços, ficando para sempre em causa as antigas estruturas sociais de ordens, o feudalismo e as relações pessoais de dependência imutáveis. No entanto, o mundo estava longe de garantir igualdade na nova liberdade que se criava conceptualmente, pois as relações entre trabalhador e empregador (ou solicitador de trabalho) estavam longe de constituir uma igualdade entre pares.


O trabalho passou a ser a nova relação social que estruturou as sociedades ocidentais, no mesmo sentido em que o individualismo se assumia sem rodeios, embora fosse um conceito tão antigo como as religiões do livro ao defenderem o “livre arbítrio”. O trabalho assalariado desembaraçou-se das relações tradicionais de dependência pessoais, baseadas no parentesco, no sangue e no nascimento. Criou-se uma nova liberdade, mas, ao mesmo tempo, um novo condicionamento.


Por falar em condicionalismo à liberdade individual, será útil voltar novamente um pouco atrás. Ao assumir-se a noção de individualismo e do poder de ação do Homem, colocaram-se em causa as Leis Naturais imutáveis. Hobbes demonstrou que são os indivíduos os criadores das suas próprias leis, para si e por si; que se submetem a uma determinada autoridade por necessidade e medo. Assim também foi o mesmo para o trabalho, com o trabalhador submeter-se, em liberdade individual, a um empregador em troca de pagamento, formando uma nova lei e compromisso. Curiosamente, isto não era muito diferente do feudalismo, quando essa condição não era hereditária, e cada indivíduo podia decidir a quem prestar vassalagem. Seculos depois, Hegel aprofundou a ideia de que é o Homem quem faz a sua história – coisa que hoje nos parece obvia. Partindo de Hegel, Marx diz que o homem não pode existir de outro modo que não trabalhando, construindo a seu percurso, inspirando também no humanismo de Bacon – esse pensador que converteu, através da ciência e da razão, o medo em energia positiva. Para Marx, o verdadeiro trabalho era uma necessidade consciente visando fazer do mundo natural um mundo humano. Assim, o trabalho era a manifestação maior da individualidade, mas também constituiu o meio interior pelo qual se realiza a verdadeira sociabilidade. É através dele que se realiza a troca recíproca daquilo que cada um é verdadeiramente, ao colocar qualquer coisa de si no produto que faz e que troca por outros bens e serviços entre iguais.
Por sua vez, e na senda de Marx, Louis Blanc defendeu que o trabalho seria o veículo da realização do individuo e da garantia da felicidade, uma vez que o trabalhador, do ponto de vista ideal, faria exatamente o que gostaria, por no seu trabalho estar parte de si, do seu génio criador, que o realizaria e lhe traria então a felicidade. Esta visão utópica entrou posteriormente em choque com organização do trabalho taylorista/fordista, com a linha de montagem a contribuir para aprisionar qualquer eventual realização pessoal, criatividade e manifestação individual do trabalhador sujeito a esses princípios de produção. A standardização veio impossibilitar que uma parte importante do trabalho fosse criativo, e capaz de realizar aqueles para quem essa dimensão era essencial, mas pode muito bem ter trazido felicidade a outros espíritos, embora não se coadunando muito com a liberdade do espírito humano.


Por outro lado, o consumismo constituiu-se também como outra eventual prisão para quem fazia depender a sua subsistência do trabalho. O individualismo, em conjugação com o consumismo, criou uma nova armadilha. Para Hanna Arendt, o Homem moderno ficou escravo do trabalho por própria vontade, na incessante busca pelo enriquecimento urgente, aquele que nos torna pobres porque desaproveitamos a qualidade de vida no geral, e as outras dimensões da vida não produtivas que nos tornam humanos (cultura, religião, etc.). Também Heidegger vê no advento dos tempos modernos a redução das múltiplas relações que o homem mantinha com o mundo (relações de escuta, contemplação, e de ação) a uma só, a da produção-consumo. Desse modo, o trabalho como laço social é também muito redutor, pois obrigaria a traduzir toda a dimensão humana a uma relação de troca, de bens e de serviços. Segundo Hans Jonas, o capitalismo parece ser a forma mais eficaz e rápida de valorização, apoiando-se no interesse em que cada um tem em valorizar as suas capacidades, a fim de delas extrair benefícios. Isto, sem dúvida, é uma forma muito redutora de humanismo, e de vivência do individuo em comunidade. As nossas atividades humanas, felizmente, estão longe de apenas se traduzirem em produção para ganhos individuais. Se assim não fosse: a fraternidade e solidariedade seriam conceitos vazios, se bem que estão longe de ser universais.


Apesar de toda a nossa atual capacidade de acumular riqueza, e todas as possibilidades que o capitalismo em liberdade total permitiu, o Homem está longe de ser feliz. Lipovetsky argumenta que a decepção das sociedades contemporâneas, hiperconsumistas, provem da noção de existência da liberdade total de cada um se realizar pessoalmente, mas que, apesar de tudo, a felicidade continua por alcançar. Ou seja, não havendo barreiras evidentes à felicidade instala-se a frustração quando os indivíduos não a conseguem atingir, pois deixa de haver uma solução evidente ou desculpa para ela não chegar. Aqui há também um paralelismo com o desejo de ter e fazer o trabalho de sonho, aquele que realize e potencie individualmente cada pessoa.


Assim, depois de este longo texto podemos ver que a noção, definição e valor do trabalho estão longe de ser imutáveis, e até podemos dizer que a noção actual de trabalho foi, em parte, inventada no século XVIII. De qualquer dos modos, tome o futuro o rumo que tomar, será difícil conceber nele sociedades onde o trabalho seja secundarizado, mesmo que muitos trabalhos passem a ser feitos por maquinaria e tecnologia, pois novas formas de trabalho estão sempre a surgir. Mais que tudo, penso que importa, não sermos escravos do trabalho, mas usar o trabalho como garante da nossa felicidade.


Referências bibliográficas

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