segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

A incrível história das Batatas: mitos, realidade e propaganda

As batatas são um tubérculo original das américas, mas concretamente do América do Sul, sendo um dos alimentos base da cultura Inca. Foi trazida para a europa pelos espanhóis no século XVI. Mas o seu sucesso não foi imediato. 

Num artigo online de Amber (2021) há uma história incrível que surgem em outras referências espalhas pela internet. Nele descobrimos que o alimento foi recebido na europa com alguma desconfiança. O caso extremo ocorreu em frança, baseado nas crenças de que seria perigoso e nojento, que seria responsável pela transmissão de Lepra. Mas isso viria a mudar, pois hoje em França muito se consome batata, tanto que o termo inglês para batata frita é “french fries” que, traduzido diretamente, quer dizer fritas francesas. Mas voltando ao século XVIII. O governo francês baniu oficialmente as batatas em 1748. Estavam proibidas.

Outubro - Jules_Bastien-Lepage

Mas Antoine-Augustin Parmentier, um farmacêutico francês, iria mudar isso. Para seu infortúnio foi capturado pelos prussianos durante a Guerra dos anos, tendo sido obrigado a comer batatas durante o cativeiro.  Percebeu que os medos sobre o uso da batata em França eram infundados, e que o tubérculo até tinha efeitos positivos, era nutritivo e até ajudava a combater a disenteria. Em 1773, devido ao trabalho de Parmentier que comprovou que a batata era benéfica, o governo francês mudou então a lei e batatas passaram a ser promovidas como alimento saudável. Apesar de incentivos publicitários, de serem feitas iniciativas onde celebridades comias as batatas a população não aderia. 

No entanto surgiu uma ideia arrojada. Em 1781 o rei Luís XVI disponibilizou uma grande propriedade onde Parmentier plantou uma grande quantidade de batatas. Foram contratados homens armados para guardar os campos. Isto fez com que as batatas ganhassem importância e atenção. Atraiu ladrões que tentavam agora meter a mão neste valioso alimento. No fundo aquilo teria de ser bom, caso contrário não justificaria ser assim fortemente protegido. Foi genial e serviu para disseminar a batata em França. O consumo generalizado das batatas terá tido um grande impulso durante a revolução francesa, devido às vagas de fome que afetaram a França na época. A facilidade de produzir e o alto valor nutritivo da batata ajudou a superar esses momentos de crise. Era o alimento dos revolucionários? Talvez sim, mas o mas provável é que não tenha sido.

Embora a história anterior seja, muito provavelmente, uma criação da Terceira República Francesa, tendo sido ensina na escola às crianças, (Gentilcore, 2012), trata-se de um caso caricato que nos faz pensar sobre o assunto. Sabemos que Parmentier se dedicou ao estudo das batatas e que as defendeu como alimento (Smith, 2012), mas é muito provável que a história tenha sido romantizada e utilizada para fins nacionalistas, uma vez que a generalização do consumo de batatas em França terá ocorrido somente depois da primeira década do século XIX. O que é curioso é que a adoção da batata na Alemanha, na zona da Prússia na época de Parmentier, se terá ocorreido devido à Guerra dos 30 anos. Este conflito internacional arrasou o antigo Império Romano-Germánico e muitas outras partes da europa durante o século XVII. Foi um conflito longo e penoso, que depauperou os recursos da europa central, com efeitos no século seguinte. Recorrer à batata foi uma forma de suportar os volumosos exércitos e de responder à falta de mão-de-obra e instabilidade dos sistemas de produção agrícolas que sofriam com a guerra interminável (McNeill, 1999).

Durante o século XIX ouve outro evento importantíssimo relacionado com as batatas. Na Irlanda dos meados do século XIX a esmagadora maioria da população era rural e dependia, direta e indiretamente, da produção de batatas para sobreviver. Isto porque a população agrícola era arrendatária dos terrenos dos senhores locais. Era um sistema que não incentivava a investimentos e inovação, sendo a batata a melhor colheita para o efeito, dado o baixo custo de investimento e cuidados a ter durante o processo de crescimento. Mas, em 1845, uma praga causada por um fungo destruiu as plantações e gerou vagas de fome duraram até ao final dessa década. No total mataram um milhão de irlandeses e forçaram outro milhão à imigração, principalmente para os Estados Unidos da América (Kinealy, 2006). De notar que a população irlandesa da época rondava os 8 milhões, o que significa que 25% da população desapareceu por causa das batatas.

Assim, a batata, hoje tão comum e popular por todo o mundo, tão presente em cadeias de comida rápida, teve um processo atribulado até atingir esse estatuto. A desconfiança, os mitos e dependências foram gerando novas oportunidades, desenvolvimento, mas também miséria e fome. Exemplos de como funciona a mente humana, de como pode ser difícil mudar hábitos. De como a necessidade de sobrevivência, o poder político e a propaganda geram mudanças socais, económicas e culturais diretas e indiretas. 


Referências:

Gentilcore, D. (2012). Italy and the Potato: A History, 1550-2000. Bloomsbury Publishing.

Smith, A. F. (2012). Potato: A global history. Reaktion Books.

Kanuckel, Amber (2021). The Strange History Of Potatoes And The Man Who Made Them Popular, Farmer’s Almanac. Disponível em: The Strange History of Potatoes And The Man Who Made Them Popular - Farmers' Almanac

Kinealy, C. (2006). This great calamity: the great Irish Famine: the Irish Famine 1845-52. Gill & Macmillan Ltd.

McNeill, W. H. (1999). How the potato changed the world's history. Social Research, 67-83.


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Evitar as perdas de produtividade num brainstorming através de jogos de tabuleiro

 Pode haver tentações para fazer processos ou atividades de brainstorming por tudo e por nada. Estão perfeitamente disseminadas as vantagens de fazer brainstorming, de como podem permitir ajudar a gerar novas ideias, de forma a que possam ser depois desenvolvidas para alavancar projetos, empresas e instituições. Sabemos que temos de garantir alguns pressupostos e condições para que isso possa ser possível, por exemplo: a liberdade de expressão sem comentários prévios e juízos de valor quando as ideias estão a ser apresentadas, mesmo que sejam absurdas numa primeira análise. É também do conhecimento comum que os brainstorming são feitos em grupo.

No Moulin Rouge - Toulouse-Lautrec

Mas, mesmo tendo estes cuidados existem alguns problemas adicionais, conhecidos como perdas de produtividade. Existe uma noção de que o trabalho em equipa é mais produtivo num brainstorming, embora isso, na prática, nem sempre seja verdade. Alguns indivíduos trabalham e são muito mais criativos quando trabalham sozinhos e só assim poderão inovar verdadeiramente. Ao trabalhar em grupo alguns membros podem simplesmente andar à boleia, pouco fazendo. Outros, sentindo que estão a ser pouco produtivos podem tentar disparar o máximo de contributos mesmo que nada acrescentem para tentar estar a par. Outros, pelo mesmo efeito, sentindo que estão a ser demasiado produtivos podem refrear a sua participação para evitar o domínio do processo, mesmo quando os seus contributos são claramente melhores que os demais. Noutros casos, as interrupções ou a obrigação em fazer rondas circulatórias de participação, podem induzir quebras no desenvolvimento das ideias, prejudicando-as. As pessoas podem simplesmente esquecer-se do que estavam a pensar ou dizer, ficando apenas a ideia abordada de forma superficial. Quando alguns participantes têm uma personalidade “magnética” ou de liderança inata podem fazer com que, mesmo que de forma não intencional, os processos convirjam demasiado depressa para uma determinada ideia, sem surgir a disrupção que se deseja num processo de inovação. O modo como se comunica, os canais utilizados – expressão escrita, oral ou outra - , a precisão de linguagem podem ser demasiado restritas e condicionar também a criatividade. 

Tendo em conta estas restrições e efeitos indesejados, os processos de brainstorming deveriam ser implementados com alguma cautela. Basear todo o processo de inovação neles pode ser um problema. São uteis e devem ser feitos, mas definindo processos e regras para retirar deles o melhor partido, tentando evitar os enviesamentos, quebras de produtividade e pouca profundidade, tal como enunciado anteriormente. 

Recentemente, numa conferência apresentei da especialidade, apresentei um artigo onde os jogos de tabuleiro podem ser utilizados para abordar estes problemas e melhorar os processos de brainstorming: Fast Brainstorm techniques with modern board games adaptations for daily uses in business and project managing. Esse artigo pode ser consultado aqui em inglês. De notar que os jogos podem gerar as necessárias regras que garantem igualdade de participação, as múltiplas formas de expressão sem domínio externo, produzir processos de cocriação controlados com mais ou menos influência externa, gerar uma atividade que motive e envolva todos os participantes, tal como criar verdadeiros processos disruptivos em que os participantes têm intencionalmente de fazer convergir. Os jogos não são soluções mágicas para os problemas associados aos processos de brainstorming, mas podem ajudar. 


Referências bibliográficas:

Sousa, M. (2020). Fast Brainstorm techniques with modern board games adaptations for daily uses in business and project managing. In Proceedings of the International Conference of Applied Business and Management (ICABM2020), (pp.508-524). 


quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Democracia aumentada para combater a democracia diminuída

 A democracia direta foi sempre aquele ideal inalcançável, pelo menos numa grande escala. Filósofos como Stuart Mill advogavam que seria a mais perfeita forma de liberdade democrática, cada cidadão poder decidir por si. No entanto, tal visão tem sido impossível de concretizar. Esses modelos foram ensaiados em alguns locais contidos e em curtos períodos. Temos o caso da efémera comuna de Paris, que em 1871, que durante alguns meses conseguiu manter uma forma revolucionária de sufrágio direto.  Algumas comunidades anárquicas adotaram também estes modelos, mas foram casos igualmente efémeros. Ao longo do século XX foram surgindo casos destes, aqui e ali, mas sempre sem ameaçarem os sistemas políticos vigentes, quer fossem monarquias, democracias ou ditaduras. 

Um entertenimento de eleições - William Hogarth

Um entertenimento de eleições - William Hogarth

No entanto isto pode vir a mudar no futuro. César Hidago propôs um conceito revolucionário: a democracia aumentada (Augmented Democracy). Tal como somos auxiliados por algoritmos, software, máquinas e inteligência artificial todos os dias, Hidalgo propõe que estas ferramentas nos possam ajudar também a mudar a democracia, tornando-a mais direta, reduzindo a necessidade de representação por outrem. O que se propõe é uma reflexão, mas, no fundo, uma substituição mais personalizável. No fundo seremos na mesma representados, mas por avatares que nos vão replicar virtualmente, para que possamos participar ativamente em todas as dimensões da vida política. Isto tem tanto de fascinante como de assustador. 

Apesar de haver perigos imensos, considerar a tecnologia como forma de aprofundar o modo como os cidadãos exercem os seus diretos políticos e cívicos pode ser a solução para a atual crise democrática. A democracia, tal como a conhecemos, também beneficiou do desenvolvimento tecnológicos. Mas neste caso, a dúvida é maior que a dos indecisos ou dos abstencionistas. Seguramente teremos de tomar uma posição sobre isto. 


Referências:

Altman, D. (2010). Direct democracy worldwide. Cambridge University Press.

Perez, O. (2020). Collaborative е-Rulemaking, Democratic Bots, and the Future of Digital Democracy. Digital Government: Research and Practice1(1), 1-13.

Simões, M. C. (2013). John Stuart Mill: utilitarismo e liberalismo. Veritas58(1).


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Como as epidemias europeias e tudo o resto destruiu as civilizações americanas

Pode parecer estranho, apesar das diferenças tecnológicas, especialmente no domínio militar, ter sido tão fácil para os europeus terem dominado os impérios das américas. É ainda hoje surpreendente como caíram com tanta facilidade os impérios Azteca e Inca, sendo que as cidades da cultura Maia já estariam em colapso bem antes do no início do século XVI.

Mesoamericanos infetados com varíola - Iluminura do Codex Florentino da autoria de Bernardino de Sahagún
Fonte da imagem: https://www.nlm.nih.gov/nativevoices/timeline/180.html

Segundo William Denevau as populações humanas residentes nos continentes americanos antes da chegada dos europeus em 1492 contariam com cerca de 54 milhões de indivíduos, mas em 1635 seriam apenas 5 milhões (The Pinceton review, 2020). Estas informações constam de um manual norte americano de preparação para o exame de geografia humana. Apesar da violência do processo de conquista dos impérios nativos pré-colombianos e da própria colonização subsequente, terão sido as doenças o principal fator que contribuiu para o extermínio da população. Dificilmente saberemos qual a verdadeira proporção do impacto direto da violência militar ou das epidémias sofridas por contágio dos europeus. Os documentos da época retratam as mortes dos nativos face a doenças para as quais não tinham imunidade, tais como a gripe, sarampo, varíola, peste bubónica, entre outras. Estas estimativas variam, alguns autores sugerem que os efeitos das doenças trazidas da Europa, para a qual os nativos não tinham imunidade, tenham resultado em mortalidades que terão variado entre os 50% e os 90% (Roberts, 1989). No entanto os estudos regionais, feitos posteriormente, não parecem revelar evidências de uma vaga des pandemias continentais (Ubelaker, 1992). As evidências sugerem que as doenças fragilizaram fortemente a população nativa, afetada pela guerra e crise social e económica, em que problemas de fomes e malnutrição criaram condições para o grande decréscimo populacional (Moore, 1989). Embora isto não tenha sido nem linear nem simultâneo em todo o vasto território do novo mundo (Ubelaker, 1992), variando de intensidade e ao longo do tempo de modo desigual nos vários territórios, apesar do resultado final ter sido catastrófico. Terá sido então a conjugação de todos estes efeitos que terão gerado, numa análise global, o tal cataclismo populacional, embora não existam certezas sobre a verdadeira dimensão do mesmo. Livi-Bacci (2006) segue por esta visão, destacando as muitas incertezas que persistem, mas salientando, acima de tudo, aos efeitos conjuntos das doenças e da mudança súbita a que as sociedades pré-colombianas foram sujeitas com as interações e conquistas europeias. A mão humana foi seguramente importante, trazendo a espada, a espingarda, mas também um novo sistema de domínio, uma nova elite com hábitos culturais e novas prioridades na exploração económica, que vinha, sem saber, carregada de doenças mortais. 

Subsistem muitas incertezas sobre as civilizações da américa pré-colombiana. Um desses casos já foi aqui abordado anteriormente, sobre a civilização que construiram redes urbanas de cidades na selva amazónica. 

Num momento em que vivemos sob uma pandemia de escala global também não sabemos quais efeitos futuros nas estruturas socioeconómicas globais. Desconhecemos como as nações e organizações internacionais vão responder a crise global económica vindoura. Tudo indica que temos tecnologia e conhecimento capaz de responder melhor a estes desafios, e a cooperação internacional e conhecimento partilhado para ultrapassar isto, apesar de algumas lideranças políticas poderem vir a atrapalhar e desiludir os seus apoiantes. 

Referências bibliográficas:
Livi‐Bacci, M. (2006). The depopulation of Hispanic America after the conquest. Population and Development Review, 32(2), 199-232.
Moore, J.H. 1989. Quantitative and qualitative variables in human evolution. In Plains Indian Historical Demography and Health: Perspectives, Interpretations, and Critiques, G.R. Campbell, ed. Plains Anthropologist, Memoir 23, v. 34, no. 124, 127-133.
Roberts, L. (1989). Disease and death in the New World. Science, 246(4935), 1245.
The Princeton Review. (2019). Cracking the AP Human Geography Exam 2020. Princeton Review.
Ubelaker, D. H. (1992). Patterns of demographic change in the Americas. Human Biology, 361-379.

domingo, 5 de abril de 2020

Da agricultura e as primeiras cidades às doenças infectocontagiosas de origem animal

Tudo indica que até há cerca de 11.000 anos as populações humanas, de homo sapiens sapiens, sofriam do mesmo tipo de doenças infeciosas que os outros símios (Mack et al., 2012). Foi nesse período que terão surgido as primeiras populações sedentárias ou semissedentárias que dependiam de formas primitivas de agricultura. Seria necessária uma grande população permanente a viver em conjunto, associadas ao modo de vida sedentário, para que as doenças infectocontagiosas poderem persistir e espalhar-se pela grande maioria da humanidade (Wolfe et al., 2007). Este processo de desenvolvimento agrícola foi gradual, uma transição de sociedades errantes para sociedades que tendiam a ocupar espaços permanentes e a gerar concentrações humanas nunca registadas. O processo de desenvolvimento agrícola e concentração urbana ocorreu paralelamente, com a domesticação de animais, através da seleção por ação humana, tendo em conta as espécies disponíveis nas várias geografias e que mais se adequavam à vida em cativeiro perto de humanos (Diamond, 2002). A cidade de Jericó terá sido uma dessas primeiras cidades. 

 Jericho - Konstantin Gorbatov

Embora a sedentarização tenha permitido o crescimento das populações humanas e um maior controlo perante a dependência das incertezas provenientes das dinâmicas dos ecossistemas, algo inalcançável para as sociedades de caçadores-recolectores, esta revolução trouxe novos problemas, mais concretamente: novas doenças. Essas novas doenças tinham diferentes origens, podendo estar associadas aos estilos de vida sedentários e a uma falta de variedade da alimentação, mas principalmente às zoonoses (2020), que são as doenças que se transmitem de animais não-humanos para humanos. Muitas doenças infectocontagiosas que ainda hoje existem na espécie humanas têm origem em antigas zoonoses, sendo a gripe uma delas. Essas doenças surgiram pela proximidade de vivências com os animais domesticados, devido à concentração de pessoas em espaços exíguos. Essas doenças foram persistindo nas populações humanas através de ciclos de contaminação e capacidade de desenvolver imunidade parcial ou total, um processo lento, tanto pela força das dificuldades de transportes das primeiras civilizações como pela própria concentração populacional que raramente ia além das centenas nas primeiras cidades.  

As primeiras cidades eram pouco mais do que aldeias apinhadas de toscas casas onde pessoas, desempenhando múltiplas tarefas, viviam conjuntamente com animais em espaços sobrepostos e com escassas condições de higiene (Chueca Goitia, 1985; Mumford, 1961). A Concentração era essencial, pois o solo disponível deveria ser espartanamente gerido, a tecnologia de construção não permitia construções amplas, não havia água corrente nem sistemas de ventilação, as comunidades compactas eram mais fáceis de defender e de gerar entreajuda social, tal como garantiam menores distâncias de deslocação numa época em que viajar era muito complicado. Assim, essas primeiras cidades eram focos propícios para a transmissão de doenças entre animais e pessoas, mas lentamente entre comunidades, pois, apesar dos excedentes e prosperidade socioeconómica ter gerado normais redes de comércio, os transportes eram restritos e lentos. 

Hoje vivemos exatamente o oposto do que acontecia nestas primeiras comunidades urbanas. As condições de higiene globais são muitíssimo melhores, com uma separação higienizada, especialmente entre pessoas e animais, embora essa realidade mude em países menos desenvolvidos economicamente e onde os hábitos culturais ancestrais concorrem com normas de higiene. Mas atualmente a velocidade de deslocação de pessoas é vertiginosa. Uma nova doença, altamente infectocontagiosa, pode ser transmitida à escala global de forma nunca vista na nossa história devido à facilidade de transportes. Um caso disso é o COVID-19. Por isso, também os critérios de controlo de epidemias e pandemias vão passar a vigorar nos requisitos de planeamento e gestão de cidades, para além dos critérios de higienização que herdamos do planeamento urbano do século XIX.

Referências bibliográficas:
Choffnes, E. R. (Eds.). (2012). Improving food safety through a one health approach: workshop summary. National Academies Press.
Chueca Goitia, F. (1985). Breve historia del urbanismo (No. 307.7672 C4).
Diamond, J. (2002). Evolution, consequences and future of plant and animal domestication.
Mumford, L. (1961). The city in history: Its origins, its transformations, and its prospects (Vol. 67). Houghton Mifflin Harcourt.
Wolfe, N. D., Dunavan, C. P., & Diamond, J. (2007). Origins of major human infectious diseases. Nature, 447(7142), 279-283.Mack, A., Hutton, R., Olsen, L., Relman, D. A., &
zoonose in Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-04-05 20:56:22]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/zoonose

segunda-feira, 30 de março de 2020

Repensar a cidade alargada na era da globalização, do trabalho remoto e das pandemias

No início do século XX o famoso arquiteto Frank Lloyd Wright propôs um modelo urbano e de cidade que não vingou. Chamava-se Broadacre city. Consistia, tal como o próprio nome indica, numa cidade alargada, com base na unidade do acre, implicando um alargado consumo de solo. Partia do princípio da integração de vivendas num ambiente urbano ruralizado, em que cada vivenda dispunha de uma área de solo de 0,4 hectares que serviriam para a sua própria produção ou para atividades de exterior. Esta proposta seria a antítese do urbanismo modernista e que se tornou no modelo de inspiração vigente um pouco por todo o mundo (Mumford, 1961; Chueca Goitia, 1985).

Broadacre City Model - Frank Lloyd Wright
Fonte: https://www.architecturelab.net/what-broadacre-city-can-teach-us/

Este tipo de cidade nunca foi implementado como modelo de cidade propriamente dito, mas foi continuamente replicado nos EUA como subúrbio, inspirando no modelo habitacional para a família americana de classe média e na dependência da industria automóvel nos pós 2.ª Guerra mundial, embora a utilização dos solos associados a cada vivenda nunca tenham tido uma exploração agrícola associada, e não tenham chegada à unidade de área recomendada para cada casa. Os subúrbios cresceram em massa com os centros das cidades americanas esvaziarem-se de residentes, ficando apenas os mais pobres a viver nesses antigos espaços. Algo que, na época, levou a socióloga Jane Jacobs (2016) a dizer que as grandes cidades americanas estavam mortas, pela perda das estruturas urbanas e suas relações sociais que deveriam manter a coesão e funcionamento das sociedades urbanas. 

O modelo proposto pelo famoso Lloyd Wright, conhecido pelo organicismo modernista da Casa da Cascata, e das formas arrojadas do Museu Guggenheim de Nova York, falhava porque dependia totalmente do automóvel. Para garantir tanto espaço livre para cada habitação, e por não se preverem aglomerados em altura, as distâncias a percorrer neste modelo urbano individualista teriam de ser feitas por automóvel privado. Se, mesmo sem levar este modelo à prática, as cidades atuais se mostraram insustentáveis pelo excesso de automóveis, imagine-se como seria se o modelo cidade alargada se tivesse generalizado. Curiosamente, atendendo à realidade Portuguesa, e ao conceito de urbanismo disperso que se manifesta nas periferias urbanas e nas zonas rurais de transição, acabamos por implementar estes modelos de cidade alargada, mas ao longo de vias, naquilo a que Álvaro Domingues (2010), Domingues chamou “A Rua da Estrada”.

Mas numa altura em que vivemos sob clausura, devido à pandemia do COVID-19, estes modelos de cidade alargada parecem ser boas soluções, por permitirem afastamento social com fruição da vida fora de portas e área de solo suficiente para explorar agricolamente para subsistência das unidades familiares. No enanto, não deixam de ser modelos urbanos que tendem para uma forte insustentabilidade, que implicam custos que podem chegar a ser até cerca de 5 vezes mais para o fornecimento de infraestruturas públicas, serviços e transportes (Carvalho et al., 2013). Por isso, a aparente sustentabilidade agrícola perde-se nos efeitos negativos da insustentabilidade geral, pois a vida contemporânea exige muitas outras necessidades. Nunca nos podemos esquecer que o solo é um recurso natural não renovável. No entanto, na era das comunicações instantâneas de banda larga e do teletrabalho pela internet, onde se dispensam tantas deslocações, alguns destes modelos possam ser repensados. Se considerarmos que os próprios sistemas de transportes, com os veículos autónomos movidos a energias sustentáveis a surgir, ficamos com ainda mais incertezas sobre a ocupação futura do território. Será que passaremos a considerar os modelos de ocupação do solo de média densidade como a melhor opção?

Referências bibliográficas
Carvalho, J., D'Abreu, A., Pais, C., & Gomes, P. (2013). Ocupação Dispersa: Custos e benefícios à escala local. Direcção Geral do Território, Lisboa, Portugal.
Chueca Goitia, F. (1985). Breve historia del urbanismo (No. 307.7672 C4).
Domingues, Á. (2010). A rua da estrada. Cidades-Comunidades e Territórios, 59-67.
Jacobs, J. (2016). The death and life of great American cities. Vintage.
Mumford, L. (1961). The city in history: Its origins, its transformations, and its prospects (Vol. 67). Houghton Mifflin Harcourt.

sexta-feira, 13 de março de 2020

A Origem da Quarentena

Com a pandemia do COVID-19 a palavra quarentena entrou no nosso vocabulário diário. Atendo aqui ao intuito de partilha de conhecimento do blogue, muito dele de origem histórica, é pertinente investigar um pouco sobre a origem do termo. Assim podemos também usar o conhecimento histórico para refletir e introduzir outros assuntos que estão para além dele, neste caso sobre os métodos de controlo de pandemias.

Vista da Quarentena em Lyon - Jean-Michel Grobon

Foram várias as pandemias registadas na história. Casos de doenças contagiosas eram também motivo para medidas especiais de contenção de propagação, muitas delas associadas a medidas preventivas de higiene, mesmo em épocas como a Idade Média. Há que relembrar que existiam cudados de higiene na idade média e que as pessoas que viviam nessa época não eram indiferentes à higiene individual e pública (Magnunsson, 2013; Smith, 2008), embora estivessem longe dos hábitos atuais. A total falta de higiene e cuidado sanitário, e até uma tendência para imundice, durante a época medieval é um mito. 

Sabemos que os doentes com lepra eram ostracizados e forçados a viver à parte da sociedade medieval. Sabemos que esses doentes, tal como outros enfermos, eram colocados e forçados a permanecerem em locais foram das cidades, caso disso em Portugal são as "gafanhas"* topónimos que ainda encontramos pelo território nacional, mas que na era medieval se destinava a acolher e conter pessoas indesejadas e contaminadas. Sabemos também que muitos cercos a cidades e castelos eram vencidos mais pelas doenças que pelo confronto militar. Temos o caso do cerco a Lisboa em 1384, anterior à famosa batalha de Aljubarrota, que teve de ser levantado pelos castelhanos, uma vez que as suas tropas estavam a ser dizimadas por efeitos de “pestes”**. Foi a doença que salvou a capital do reino de cair em mãos castelhanas e permitiu continuar as guerras pela manutenção da independência.

Apesar destes hábitos antigos, a termo quarentena terá origem nas medidas de controlo de epidemias pela República de Veneza, especialmente da peste bubónica, conhecida como peste negra, de assolou a Eurásia e norte de Africa a partir de meados do século XIV. A primeira medida deste género foi tomada em Ragusa, atual Dubrovnik. Em 1377, o grande concelho da cidade, que era dominada pelo império ultramarino de Veneza, aprovou o trentino. Essa medida consistia em 30 dias de isolamento do barcos e respetivas tripulações que chegavam ao porto da cidade. Só depois desse período podia haver contacto com a população e feitas as transações comerciais (Mackowiak & Sehdev, 2002). Foi a forma encontrada para controlar contágios num império comercial. Não se sabe exatamente como dos 30 dias se passou para os 40, do trentino para o quarentino. Hoje sabemos que os tempos de segurança para prevenir contágio, tendo em conta os períodos de incubação, rondam os 28 dias para maioria das doenças, mas na época a adoção dos 40 dias pode ter tido uma razão religiosa, de influência dos 40 dias tipicamente utilizados e simbolismo importante na cultura judaico-cristã. O caso mais evidente é o da quaresma, com os seus 40 dias de duração (Ibem, Idem). 

Tudo indica que a quarentena seja uma medida muito antiga, fruto do conhecimento empírico e experimental que comprovou que os isolamentos sociais são a melhor forma de controlar pandemias e contágios de doenças desconhecidas. A razão da adoção dos 40 dias, que deu origem ao termo quarentena, pode ter então também uma influência cultural e religiosa. Hoje as quarentenas já não duram exatamente os 40 dias, dependendo de cada caso, mas os efeitos práticos continuam a ser exatamente os mesmos. 

Referências bibliográficas:
Magnusson, R. J. (2013). Medieval urban environmental history. History Compass, 11(3), 189-200.
Mackowiak, P.A. & Sehdev, P. S (2002). The Origin of Quarantine. Clinical Infectious Diseases, Volume 35, Issue 9(1), 1071–1072, https://doi.org/10.1086/344062
Smith, V. S. (2008). Clean: a history of personal hygiene and purity. Oxford University Press.

*Gafanha in Dicionário infopédia de Toponímia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-03-13 12:42:22]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/toponimia/Gafanha
**Crise de 1383-1385 in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-03-13 12:44:32]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/$crise-de-1383-1385

segunda-feira, 9 de março de 2020

Sex Education: uma séria multiplamente utópica

Umas das primeiras series que comecei a ver na Netflix - se não foi mesmo a primeira - foi Sex Education. Tinha boa avaliação, era recente e parecia encaixar em preferências partilhadas com a esposa. O palpite estava correto, consumimos a primeira série num instante. E a segunda temporada, que saiu recentemente, foi vista ainda mais depressa. 

Fonte da imagem: https://noticiasetecnologia.com/netflix-imagens-temporada-2-sex-education/


Sex Education decorre, supostamente, no universo tipificado das series e filmes sobre adolescentes, algures na Inglaterra contemporânea. O contexto é uma escola secundária, com muitas personagens, umas mais preponderantes que outras, que se cruzam em múltiplas relações reais e surreais onde o sexo é o mote. É a expressão surrealista, ou hiper-realista que faz sobressair “Sex Education” como uma série de humor bem diferente. Há um toque de realidade, de exagero, e de exagero que fica aquém de realidades ocultas muito para além do sexo. 

A personagem principal, um jovem altamente condicionado pelas suas fobias sexuais – faltando aqui um termo mais técnico – acaba por ser o terapeuta sexual da sua escola, replicando e reinterpretando o conhecimento que obtém indiretamente através dos seus pais divorciados – eles sim sexólogos. Isto por si só já é caricato e obviamente tem requisitos suficientes para gerar histórias interessantes. No entanto, neste microcosmos os tabus são removidos sem nos avisarem. Todas as formas de sexualidade são expostas sem tabus, com humor, mas sem infantilidades. Isso é tão refrescante, tão diferente e tão original. Para além de tudo isso é efetivamente uma série educativa – algo que é muito dificil de fazer na prática. Aprendemos de facto com esta série, apesar de ter momentos hilariantes de humor, tal como momentos de tensão trágica. Sex Education vai abrir-vos a cabeça. E se pensam que não têm preconceitos provavelmente estão enganados – eu pensava que não tinha. Mas o melhor que têm a fazer é ver a série por vós mesmos, e experimentar aprender de forma emocional e intensa, apesar da distância enorme que separa a TV da realidade replicada. 

Os atores são realmente competentes e expostos a situações desconfortáveis. A fotografia, cenários, planos de filmagem e guarda roupa impecáveis, com qualidade máxima. Ajudam a criar, apesar de tudo, uma utopia – o tal lugar que não existe. Quanto ao enredo e história surge o equilibrio perfeito entre realidade, ficção e surrealismo que permite transmitir entretenimento e informação de forma integrada. 

Mas Sex Education é então uma série educativa utópica, por vários motivos. É pouco provável que existam comunidades escolares assim tão livres e tolerantes - infelizmente. Verdadeiramente utópico é também, mudando completamente de assunto, o modelo urbano apresentado, porque existe uma clara cultura urbana que supostamente vive numa paisagem rural, onde todas as habitações estão isoladas e integradas na natureza, incluindo a própria escola. Está sempre bom tempo – nunca chove nesta Inglaterra - e tudo é distante apesar de rapidamente se chegar a pé ou de bicicleta a qualquer lado. Os automóveis são todos antigos, o que é realmente bizarro nesta utopia verde, apesar dos smartphones dominarem. A comunidade é etnicamente muito diversificada, multicultural a um nível que será dificil de existir em comunidades pequenas. Apesar disso são poucas as manifestações de choques culturais. 

Agora que remato o texto com estas palavras fico com a sensação de que o tema de Sex Education é a utopia social. Tudo feito de uma forma em que a dimensão sexual parece ser aquela utopia mais próxima de podermos mudar. Afinal quem ainda tem medo de falar de sexo?

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O que é uma moeda local?

Existe uma extensa literatura associada às moedas locais. Este tipo de moedas, habitualmente implementadas por cidades ou até mesmo por aglomerados urbanos mais pequenos, existem em muitos formatos diferentes, criadas por muitos motivos distintos embora se destaque o desenvolvimento sustentável como principal objetivo. Podemos encontrar na literatura exemplos da criação de moedas locais para responder aos impactos locais de crises económicas de dimensão nacional, para responder à falta de moeda circulante ou para combater fenómenos de inflação, facilitando e coordenando uma economia de troca direta local. As moedas locais têm servido também como aplicação de políticas de desenvolvimento local e regional, permitindo, numa economia de mercado sem fronteiras, ter intervenção coletiva para assuntos concretos locais. Trata-se da tentativa de promover formas de desenvolvimento económico fortemente influenciado pelos conceitos de desenvolvimento sustentável, que conjuga as dimensões económicas, culturais, sociais, ambientais e de própria governação das comunidades.

O Banqueiro e a sua mulher - Marinus van Roejmerswaelen

Na prática as moedas locais podem ser quase eufemismos, e apenas existir como sistemas de troca por ações e comportamentos, escapando à abordagem economicista mais dura. Podem ser também suportes de apoio a processos de gamificação. Atualmente existem aplicações de moeda local prendem-se com a promoção de certos comportamentos cívicos, convertíveis em ganhos monetários, implementando uma espécie de “moeda local cívica”. Não se trata propriamente de substituir o modelo económico, mas de criar um sistema alternativo de recompensas, que existe de forma paralela, onde os cidadãos podem aceder a essas mais-valias, quer seja em cripto-moedas ou em moeda materializável, como recompensa por comportamentos benéficos para a comunidade.  Esses ganhos podem ser trocados por moeda corrente, mediante as regras de quem implementou e monitoriza o sistema de moeda local. Invariavelmente, as moedas locais tendem a estar ligadas aos movimentos ecologistas, à promoção de comportamentos alternativos e a formas de consumo mais sustentáveis. No entanto, apesar de tudo, podem servir como promoção turística dos territórios e como formas diferenciadoras de fazer marketing territorial. Mas as moedas locais podem ser tanto instituídas por organismos estatais ou governos locais, tanto como de modo mais informal por comunidades locais. 

As moedas locais, quer sejam implementadas através de sistemas de recompensas ou como mecanismos de intervenção económica direta, tendem assim a ser utilizadas para promover a produção e o comércio local, pois funcionam como subsídios que capacitam e alavancam a produção. Enquanto se faz isso estabelecem-se também redes sociais locais baseadas nas relações de consumo de vizinhança, que podem ser atividades para outras matérias, aumentando a resiliência das comunidades locais para responderem coletivamente a outros desafios. 

De um ponto de vista político, a implementação de moedas locais tende a ser vista como uma medida intervencionista, pouco popular entre os defensores do liberalismo económico mais radical. Apesar disso estas moedas podem servir como mecanismos de garantia de mais autonomia e alguma emancipação económica, atuando como um contrapeso perante a incapacidade de controlar os efeitos dos fluxos monetários globalizados nas economias locais. As moedas locais tendem a gerar atalhos e redireccionamento dos fluxos financeiros dentro de espaços territoriais delimitados, mas de forma a reduzir efeitos macroeconómicos. São formas de fixar alguns recursos localmente e de depender menos de ajudas externas, mesmo dentro de um sistema nacional. Ao estudar os fluxos das moedas locais é possível compreender melhor o funcionamento das economias locais.

As moedas locais apresentam vantagens passíveis de serem utilizadas nas políticas de desenvolvimento territorial, especialmente em territórios bem delimitados e quando aplicadas para objetivos precisos e atividades estrategicamente definidas. Nunca serão uma forma de substituir as moedas vigentes, embora isso tenho sido experimentado em casos de crise económica generalizada, mas que rapidamente se abandonou assim que os sistemas monetários nacionais se estabilizam. As moedas locais, não sendo um milagre, podem ser então ferramentas poderosas para o futuro das comunidades, quando devidamente conjugadas com outras formas de promoção do desenvolvimento local. Podem igualmente servir para refletir e verificar os efeitos locais da liberalização económica e dinâmicas de equilíbrios e desequilíbrios que se geram nas várias escalas territoriais. 

Referências bibliográficas:
Gomez, G. M., & Helmsing, A. H. J. (2008). Selective spatial closure and local economic development: What do we learn from the Argentine local currency systems?. World Development, 36(11), 2489-2511.
Helleiner, E. (2000). Think globally, transact locally: Green political economy and the local currency movement. Global society, 14(1), 35-51.
Pacione, M. (1999). The other side of the coin: local currency as a response to the globalization of capital. Regional Studies, 33(1), 63.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Os jogos como rituais de símbolos

Um jogo consiste num sistema de conflitos onde jogadores interagem, segundo regras, para tentar atingir objetivos, evidenciando-se o desempenho de forma mensurável (Salen & Zimmerman, 2004). Os jogos podem ser vistos como arenas de treino, como formas de arte e expressividade e, de um ponto de vista mais filosófico, como atividades que transpõem a realidade e transportam quem os joga para espaços mágicos. Johan Huizinga (2014), que foi provavelmente o primeiro grande filosofo moderno a dedicar-se ao estudo dos jogos, foi quem nos apresentou primeiro este conceito transcendental. Para ele os jogos permitiam transportar os jogadores para o “círculo mágico”, algo que se formava enquanto estávamos envolvidos e imersos num jogo, formando um espaço não sério onde a realidade era transfigurada num novo universo, que cativava e permitia outras formas de expressão, interação e criatividade. No entanto, este fenómeno e as emoções geradas pelos jogos podem ser nefastos, quando se tornam vícios, pelo que se exige equilibrio. Para Huizinga, o homo sapiens (sapiens), através da sua íntima relação com os jogos, torna-se homo ludens, indo para além da mera inteligência dita técnica e cognitiva. Apesar de não ser o único animal que brinca, é o único que joga deliberadamente e ao longo de toda a sua existência, em todas as idades e como forma de comunicação, geração de significados e vinculação social. Há que relembrar que jogar é diferente de brincar, pelo que no brincar não há um objetivo a atingir, enquanto que no jogo há sempre, há uma construção racional e ricas narrativas para explorar. 

Macacos a jogar cartas - Abraham Teniers

Então quando se procede a um ritual, incluindo as expressões religiosas mas não exclusivamente, através da conjugação de vários símbolos, não haverá tentativa de transposição para uma espécie de “círculo mágico”? O que são os símbolos se não elementos que combinamos para explorar significados e construir narrativas? Um jogo é uma construção criativa e social através de múltiplos elementos, de mecânicas e de estéticas, deliberadamente combinadas para um determinado objetivo jogável. Nos rituais combinam-se símbolos e procedimentos, gerando estruturas de significados que transmitem narrativas. Isto acontece em todos os rituais, religiosos ou não. Tomemos em conta os rituais familiares e de grupos mais ou menos informais como aqueles que caracterizamos como “grupos de amigos”. Os símbolos no geral são passíveis de múltiplas interpretações, mas nos jogos são vinculados por sistemas de regras básicas que deveremos obedecer. O jogo será então um ritual? Nessas atividades de jogos, vistos como rituais, tudo isso se materializa e adensa de modo crescente para atingir os tais objetivos. Pode ser tão simplesmente o ato de marcar um golo, que na prática consiste em introduzir uma bola numa baliza, mas que simbolicamente tem um significado poderoso de simbolizar o cumprimento do derradeiro objetivo, ganhando esse significado quando interpretado no “círculo mágico” de Huizinga, mesmo que não nos apercebamos.  

Indo um pouco mais a fundo nesta abordagem aos jogos, especialmente aos jogos analógicos, podemos chegar a uma diferente forma de “jogos dos símbolos”, o que não exclui a transferência da mesma analogia para o fenómeno digitais. Falar de jogos de entretenimento, seja em que formato for, carece igualmente de uma análise. Porque todos os jogos podem ser lúdicos no sentido de proporcionarem diversão, mas ao mesmo tempo sérios, tudo dependendo da interpretação e modo como são explorados. Quando se assiste a um ritual sem se compreender o devido significado, podemos ser levados a entender essas dinâmicas como brincadeiras ou infantilidades inúteis. Mas se compreendermos os significados e os objetivos ficam evidentes, tudo fica mais claro, e sobressai a importância da sua realização.

Nos jogos analógicos existem limitações óbvias. Não se recorre a multimédia, animação de imagens e sons, nem existem as automatizações que guiam os jogadores durante o jogo de forma tutorial. Nos jogos digitais as regras são forçosamente cumpridas através da programação estabelecida. São mais imediatos e intensos, mas igualmente mais efémeros e tendencialmente descartáveis. Já os jogos analógicos, vulgarmente conhecidos como jogos de tabuleiro, têm de recorrer a componentes físicos, altamente simbólicos das realidades que pretendem representar, algo só completamente conseguido quando conjugados com mecânicas de jogo, forçosamente ativadas pelos jogadores de forma consciente e intencional. Existem sistemas de regras, mas nada força a que os jogadores os tenham de seguir se isso resultar de um comum acordo. Podem simplesmente ignorar as regras escritas e fazer a sua própria interpretação, podendo criar outras harmonias ou caos, ou seja, outras regras. Mesmo seguindo as regras formais do jogo, previamente estabelecidas, nada garante que a interpretação pessoal de cada jogador ou grupo de jogadores seja a mesma do criador do jogo. Estas limitações são igualmente oportunidades, pois capacitam os jogadores para mais envolvimento, para interpretações pessoais e coletivas. Jogar este tipo de jogos nunca é uma atitude passiva. No entanto, estes jogos nem sempre geram interesse ou cativam todos os jogadores. Nem sempre os componentes e as mecânicas geram narrativas que transportam os jogadores para o “círculo mágico”. Nem todos percebem e retiram toda a riqueza deste sistema, tal como nem todos compreendem a forma e importância dos rituais, sejam eles quais forem. 

Referências bibliográficas:
Huizinga, J. (2014). Homo Ludens Ils 86. Routledge.
Salen, K. & Zimmerman, E. (2004). Rules of play: Game design fundamentals. MIT press.



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