Um jogo consiste num sistema de conflitos onde jogadores interagem, segundo regras, para tentar atingir objetivos, evidenciando-se o desempenho de forma mensurável (Salen & Zimmerman, 2004). Os jogos podem ser vistos como arenas de treino, como formas de arte e expressividade e, de um ponto de vista mais filosófico, como atividades que transpõem a realidade e transportam quem os joga para espaços mágicos. Johan Huizinga (2014), que foi provavelmente o primeiro grande filosofo moderno a dedicar-se ao estudo dos jogos, foi quem nos apresentou primeiro este conceito transcendental. Para ele os jogos permitiam transportar os jogadores para o “círculo mágico”, algo que se formava enquanto estávamos envolvidos e imersos num jogo, formando um espaço não sério onde a realidade era transfigurada num novo universo, que cativava e permitia outras formas de expressão, interação e criatividade. No entanto, este fenómeno e as emoções geradas pelos jogos podem ser nefastos, quando se tornam vícios, pelo que se exige equilibrio. Para Huizinga, o homo sapiens (sapiens), através da sua íntima relação com os jogos, torna-se homo ludens, indo para além da mera inteligência dita técnica e cognitiva. Apesar de não ser o único animal que brinca, é o único que joga deliberadamente e ao longo de toda a sua existência, em todas as idades e como forma de comunicação, geração de significados e vinculação social. Há que relembrar que jogar é diferente de brincar, pelo que no brincar não há um objetivo a atingir, enquanto que no jogo há sempre, há uma construção racional e ricas narrativas para explorar.
Macacos a jogar cartas - Abraham Teniers |
Então quando se procede a um ritual, incluindo as expressões religiosas mas não exclusivamente, através da conjugação de vários símbolos, não haverá tentativa de transposição para uma espécie de “círculo mágico”? O que são os símbolos se não elementos que combinamos para explorar significados e construir narrativas? Um jogo é uma construção criativa e social através de múltiplos elementos, de mecânicas e de estéticas, deliberadamente combinadas para um determinado objetivo jogável. Nos rituais combinam-se símbolos e procedimentos, gerando estruturas de significados que transmitem narrativas. Isto acontece em todos os rituais, religiosos ou não. Tomemos em conta os rituais familiares e de grupos mais ou menos informais como aqueles que caracterizamos como “grupos de amigos”. Os símbolos no geral são passíveis de múltiplas interpretações, mas nos jogos são vinculados por sistemas de regras básicas que deveremos obedecer. O jogo será então um ritual? Nessas atividades de jogos, vistos como rituais, tudo isso se materializa e adensa de modo crescente para atingir os tais objetivos. Pode ser tão simplesmente o ato de marcar um golo, que na prática consiste em introduzir uma bola numa baliza, mas que simbolicamente tem um significado poderoso de simbolizar o cumprimento do derradeiro objetivo, ganhando esse significado quando interpretado no “círculo mágico” de Huizinga, mesmo que não nos apercebamos.
Indo um pouco mais a fundo nesta abordagem aos jogos, especialmente aos jogos analógicos, podemos chegar a uma diferente forma de “jogos dos símbolos”, o que não exclui a transferência da mesma analogia para o fenómeno digitais. Falar de jogos de entretenimento, seja em que formato for, carece igualmente de uma análise. Porque todos os jogos podem ser lúdicos no sentido de proporcionarem diversão, mas ao mesmo tempo sérios, tudo dependendo da interpretação e modo como são explorados. Quando se assiste a um ritual sem se compreender o devido significado, podemos ser levados a entender essas dinâmicas como brincadeiras ou infantilidades inúteis. Mas se compreendermos os significados e os objetivos ficam evidentes, tudo fica mais claro, e sobressai a importância da sua realização.
Nos jogos analógicos existem limitações óbvias. Não se recorre a multimédia, animação de imagens e sons, nem existem as automatizações que guiam os jogadores durante o jogo de forma tutorial. Nos jogos digitais as regras são forçosamente cumpridas através da programação estabelecida. São mais imediatos e intensos, mas igualmente mais efémeros e tendencialmente descartáveis. Já os jogos analógicos, vulgarmente conhecidos como jogos de tabuleiro, têm de recorrer a componentes físicos, altamente simbólicos das realidades que pretendem representar, algo só completamente conseguido quando conjugados com mecânicas de jogo, forçosamente ativadas pelos jogadores de forma consciente e intencional. Existem sistemas de regras, mas nada força a que os jogadores os tenham de seguir se isso resultar de um comum acordo. Podem simplesmente ignorar as regras escritas e fazer a sua própria interpretação, podendo criar outras harmonias ou caos, ou seja, outras regras. Mesmo seguindo as regras formais do jogo, previamente estabelecidas, nada garante que a interpretação pessoal de cada jogador ou grupo de jogadores seja a mesma do criador do jogo. Estas limitações são igualmente oportunidades, pois capacitam os jogadores para mais envolvimento, para interpretações pessoais e coletivas. Jogar este tipo de jogos nunca é uma atitude passiva. No entanto, estes jogos nem sempre geram interesse ou cativam todos os jogadores. Nem sempre os componentes e as mecânicas geram narrativas que transportam os jogadores para o “círculo mágico”. Nem todos percebem e retiram toda a riqueza deste sistema, tal como nem todos compreendem a forma e importância dos rituais, sejam eles quais forem.
Referências bibliográficas:
Huizinga, J. (2014). Homo Ludens Ils 86. Routledge.
Salen, K. & Zimmerman, E. (2004). Rules of play: Game design fundamentals. MIT press.
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