terça-feira, 7 de outubro de 2014

As caravelas terão descoberto o caminho marítimo para a Índia?

Quando se faz alguma alusão aos descobrimentos portugueses de imediato surgem as caravelas. Essa embarcação, devidamente adaptada pelos portugueses à exploração marítima, foi muito importante, mas não foi com caravelas que os Portugueses chegaram, por exemplo, à Índia.
Chegada das Relíquias de Santa Auta à Igreja da Madre de Deus - Gregório Lopes

Para começar, um dos primeiros grandes marcos do início dos descobrimentos foram as descobertas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira e do dobrar do cabo Bojador, em 1434, sob influência da política dos descendentes de D. João I. No entanto essas descobertas foram feitas em barcas (que eram pequenas embarcações de um só mastro, com vela quadrada e quase sempre sem coberta, onde se recorria A remos habitualmente. Gil Eanes foi além Bojador numa barca [2], e não numa caravela, talvez porque a tecnologia ainda não estivesse disponível na altura. Por outro lado, Vasco da Gama chegou a índia em naus, e não em caravelas, isto porque para tão grande viagem eram necessários barcos de maior tonelagem, que levassem mais tripulação e tivessem mais capacidade militar (algo que as caravelas não garantiam).
As caravelas foram utilizadas principalmente na exploração do golfo da Guiné e do Atlântico Sul, e é fácil perceber porquê. Chamavam-lhe mesmo caravelas de exploração. As caravelas eram muito manobráveis, capazes de bolinar (navegar contra o vento fazendo ziguezagues de modo a potenciar a capacidade que as vela triangulares tinham em aproveitar os ventos rasantes), navegar em rios desconhecidos dado o baixo calado (a profundidade que o barco se afunda na água em condições de navegação), possibilidade de utilização de remos e de ter algumas pequenas peças de artilharia e carga ligeira [2].
As caravelas terão sido utilizadas na segunda metade do século XV (com referências ao termo a partir de 1441)[1] . Há a certeza que Bartolomeu Dias dobrou o Cabo das Tormentas com uma caravela, o que é justificável, pois era uma missão de exploração por águas completamente desconhecidas, em que se exigiam as características das caravelas. Depois de definida a rota de passagem então vieram as naus - podendo justificar o hiato temporal de 10 anos entre o dobrar do cabo e a chegada à índia -, com muito mais capacidade de tonelagem, muito mais resistentes e com maior poder militar. Quanto muito terão chegado à índia versões posteriores de caravelas (redondas) de maiores dimensões como embarcações de apoio [2], mas estavam longe de ser as primeiras caravelas de exploração.
Algo também curioso é que o Infante D. Henrique pode nunca ter “mandado” caravelas em missão, dado que morreu em 1460, e à partir de 1440 pareceu andar mais preocupado com a expansão territorial no norte de África que com a exploração costeira para sul [3].
Assim as caravelas contribuíram para a descoberta do caminho marítimo para a índia, numa parte do percurso, mas não foram elas que iniciaram nem concluíram a demanda.
 
Referências bibliográficas
  • Bethencourt, Francisco (dir.). "A expansão marítima portuguesa - 1400-1800", Edições 70, 2010.
  • Domingues, Francisco Contente. “Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI”, Cadernos da Câmara Municipal de Vila do Conde, Minerva, 2006
  • Godinho, Vitorino Magalhães. "A Expansão portuguesa quatrocentista", Dom Quixote, 2008.
 

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Espirrar em várias línguas

Recuperando parte de um antigo texto aqui do blogue [1], pois na sua parte final consta algo que merece ser destacado por si só num texto isolado. Isto a propósito dos espirros.
Mulher em Lágrimas - Picasso
Quando espirramos fazemo-lo como um movimento involuntário, ainda que algumas pessoas os tentem conter e travar. Não isso que vou discutir ou analisar. O que aqui vale a pena referir é o som que fazemos. A onomatopeia (processo de formação de uma palavra por imitação de um som natural [2]) do espirro é uma curiosidade em si, pois pode ser muito diferente de língua para língua, apesar de até poderem ter origens comuns.

Assim, quando espirrarem no estrangeiro, muito provavelmente denunciam a vossa condição de forasteiros.

Aqui ficam então alguns exemplos demonstrativos [3]:
• Em Árabe é "عطسة"
• Em Alemão é "hatschi"
• Em Búlgaro é "апчих"
• Em Cantonês é "hut-chi" (乞嚏)
• Em Chinês é "penti" (喷嚏)
• Em Dinamarquês é "atjuu"
• Em Esloveno é "kihanje".
• Em Espanhol é "atchís" e "atchús"
• Em Francês é "atchoum"
• Em Hebreu é "apchee"
• Em Hindi é "chheenk".
• Em Indonésio é "'hatchi'"
• Em Inglês é “Atchoo”
• Em Islandês é "Atsjú"
• Em Japonês é "hakushon" ou "kushami". Escrito como はくしょん ou 嚏(くしゃみ).
• Em Letão é "apčī",
• Em Marata é "shheenka".
• Em Neerlandês é "hatsjoe" e "hatsjie"
• Em Norueguês é "atsjo"
• Em Polaco é "apsik"
• Em Romeno é "hapciu"
• Em Tagalo é "hatsing"
• Em Tailandês é "Hutchew ou Hutchei" (ฮัดชิ่ว or ฮัดเช่ย)
• Em Tâmil é "Thummal".
• Em Telugu é "Thummu".
• Em Turco é "hapşuu"
 
 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Ver os consumos energéticos em tempo real gera poupança

Vários estudos têm demonstrado que o simples facto de se visualizar em tempo real os consumos energéticos gera poupanças. Por vezes não é necessário instalar qualquer outro equipamento especial ou medidas físicas, basta saber o que se está a consumir para levar a mudanças de comportamento dos utilizadores dos edifícios para que assim se obtenha poupança energética.
Fonte: http://www.theatlantic.com/business/archive/2011/11/ges-killer-idea-a-real-time-energy-dashboard-for-your-house/248519/

Citando trabalhos e projetos da ENERDURA , são apontados vários estudos que têm vindo a comprovar isso mesmo. Segundo essa agência regional: Em 2006 a Universidade de Oxford aponta para poupanças entre 5 e 10% obtidas através da existência de informação detalhada sobre os consumos em tempo real [1]; Posteriormente a entidade reguladora do sector energético no Reino Unido apontam para poupanças de 2,8% para a electricidade e 4,5% para o gás natural [2]. Mas já outras investigações estimam também reduções entre 4 e 10% no consumo de água [3].
Assim, quer seja para os consumos de água ou de energia, ter a informação dos consumos em tempo real leva a poupanças significativas. Ainda hoje em dia os contadores, quer seja de água, eletricidade ou gás, são concebidos para utilização dos operadores e fornecedores do serviço, e não para que os utilizadores possam monitorizar e controlar os seus consumos e custos.
A mudança dos contadores será uma forma de conseguir poupança. Provavelmente será essa a tendência futura, uma vez as empresas do sector estão a orientar os seus produtos e serviços para essa possibilidade
Referências
[1] Darby, S. 2006, “The effectiveness of feedback on energy consumption : A review for DEFRA of the literature on metering, billing and direct displays”. Universidade de Oxford.
[2] BERR - Department for Business, Enterprise and Regulatory Reform, 2008, “ENERGY METERING: A consultation on smart and advanced metering for small and medium sized businesses and sites, and other non-domestic customers”.
http://www.berr.gov.uk/files/file47191.pdf
[3] http://smartcitiescouncil.com/resources/smart-water-metering-solution-reduces-water-usage-10-australian-city

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Sócrates, Platão e Aristóteles - Os Antidemocratas

Surpreendentemente (ou não) 3 dos maiores nomes da filosofia grega, todos com ligação à cidade de Atenas, durante o regime democrático, eram críticos da democracia. Os conhecidos Sócrates, Platão e Aristóteles criticavam diretamente o sistema democrático vigente. Obviamente que cada um seguia o seu modelo conceptual filosófico, e alguns eram bem divergentes, mas ambos consideravam que a democracia que conheciam não levava ao “bom governo” da polis. Eram vários os casos de tomadas de decisão absurdas. Eram vários os casos dos cargos públicos serem ocupados por cidadão incompetentes e impreparados para os desafios da governação. Não esquecer que muitos dos cargos eram obtidos por sorteio. Segundo os filósofos citados – de um modo geral e simplificado -, os cidadãos eram facilmente manipulados. Um desses casos foi a condenação à morte de Sócrates, por ter colocado em causa a democracia quando levava os jovens a refletir sobre as suas falhas. O desenrolar desastroso da condução da política ateniense durante a Guerra do Peloponeso contra Esparta resultou também de más decisões, tudo devido a instabilidade governativa e pela escolha de maus líderes. Depois disso Atenas nunca mais atingiu a sua anterior glória.
Atenas - Philipp Foltz
Todos eles dedicaram parte do seu pensamento filosófico a definir novas formas de governo que consideram superiores à democracia. Por exemplo, Platão defendia um modo particular de aristocracia (em igualdade de oportunidades) e Aristóteles uma versão moderada de oligarquia (assente no constitucionalismo), sendo que todos consideravam a tirania igualmente má. De notar que os modelos monárquicos e aristocráticos que defendem não coincidem com os sistemas de governo que conhecemos e aconteceram ao longo da história, as suas conceções são conceptuais e até utópicas (ver também notas/links [1] e [2]).
Raramente se refere esta vertente antidemocrática destes três filósofos. É certo que a democracia na sua época estava longe der ser universal como hoje, e não existiam os mecanismos e meios que hoje existem. Também as suas sociedades são incomparáveis, pois não podemos comprar geografias e realidades históricas tão diferentes. Cada sociedade tem de ser analisada e compreendida na sua realidade geográfica e histórica.
Por outro lado, tendo sido homens que tanto contribuíram para o desenvolvimento do pensamento ocidental, e também para o conhecimento e ciência, talvez seja por simpatia, nesta era das democracias, que se lhes omite essa “falha”.


Notas/Links referidos no texto:
[1] - Defender a Aristocracia faz sentido?
[2] - Tecnocracia – A Utopia que Platão Prescreveu na sua República?

Fontes bibliográficas:
Farago, France;"As Grandes Correntes do Pensamento Político"; Porto Editora, 2007.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Uma introdução ao Sushi

A proibição de comer carne (primeiro decreto no século VII) e o não consumo de lacticínios levaram a que o peixe fosse a principal fonte de proteínas no Japão. 

Um provérbio japonês diz: “em primeiro lugar come-o cru, só depois grelha-o ou coze-o, como último recurso”. Dai a predileção pelo sashimi. 

O conceito de sushi nasceu um pouco por todo o sudoeste asiático como forma de preservar peixe (e carne), sendo cortado e colocado entre camadas de arroz para ser guardado durante os invernos e monções. A fermentação natural que ocorre quando o peixe é associado ao arroz gera ácido láctico que previne o apodrecimento. A junção do vinagre faz acelerar todo o processo. 

Foi no século XVII que surgiu a ideia de colocar pedaços de sashimi sobre bolas de arroz, nascendo os nigiris. Posteriormente começaram a enrolar, utilizando folhas de algas secas, os primeiros makis.
Bigsushi - Mary Ellen Johnson
O arroz do japão, fruto de séculos de manipulação natural, tem o bago mais curto e arredondado, tento também uma especial aderência que permite fazer os vários tipos de sushi e permite ser comido mais facilmente com recurso a pauzinhos. O processo de cozinha do arroz é bastante exigente, não podendo perder demasiada humidade, nem as peças de sushi serem feitas com o arroz demasiado quente para não afetar a frescura do peixe, nem demasiado frio para que não se perca a aderência. 

O peixe terá de ser sempre muito fresco. No caso dos peixes azuis (como o carapau e a sardinha) o próprio filete de peixe deve manter-se durante algum tempo em vinagre para assegurar a sua frescura e garantir um efeito anti-bacteriológico adicional. 

Da cultura japonesa o sushi recebe o conceito de equilíbrio. O Arroz deve ser cozido na mesma quantidade da água. Os vários sabores e as texturas devem equilibrar-se: o doce com o amargo, o crocante com o cremoso. 

Deve mergulhar-se os pedaços de sashimi e sushi no molho de soja para assegurar uma mais fácil digestão. Separadamente, ou diretamente no molho de soja, deve adicionar-se wasabi, que tem um efeito anti-bacteriológico. O gengibre, que é uma raiz tal como o wasabi, é também anti-bacteriológico, mas serve também para “limpar o paladar” sempre que se altera de tipo de sushi ou sashimi. 

Um mito japonês sugere que só os homens podem fazer devidamente o sushi, uma vez que a temperatura e humidade das mãos femininas alteram as propriedades do peixe. Obviamente é um mito sem qualquer fundamentação. 

As peças de sushi e sashimi devem ser comidas integralmente, sem cortes adicionais ou qualquer outro tipo de deturpação, de uma só vez. Não se devem usar as mãos nem metal para pegar as peças. Qualquer violação destes preceitos é considerada uma falta de etiqueta e respeito pelos japoneses.
Referência s bibliográficas:
  • Lins, Ana; Morais, Paulo; "Sushi em casa", Matéria Prima, 2012.
  • Wikipédia; "Sushi", disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sushi
  • Vários; "Sushi", Dinalivro, 2006.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

"No geral somos idiotas" - Um vídeo inspirado nos textos deste blogue

Recentemente participei em mais um Ignite, o nº 53 realizado em Portugal. Nessa edição comemoraram-se os 40 anos da liberdade política em Portugal. O tema desse Ignite foi a Democracia, e o espaço o Museu da Eletricidade - esse marco nacional do património industrial, excelentemente aproveitado e valorizado como museu e sala de eventos.
Partilho aqui o vídeo dessa minha participação pois ela inspirou-se em vários dos textos criados para este blogue, entre eles: Afinal de onde vêm e quem são os idiotas? ; Quando os Ministros eram escravos ; etc.
O vídeo tinha como objetivo fazer consciencialização para a necessidade de mais participação cívica política, pois esse é o único modo de concretizar na plenitude uma democracia. Se assim não for dificilmente a democracia será conveniente e verdadeiramente democrática, pensada e criada para todos os cidadãos, independentemente das eventuais hierarquias ou classes sociais, formais ou informais. A ignição para este vídeo foram as origens etimológicas dos termos "idiota", "ministro", entre outras curiosidades e conhecimentos multidisciplinares.
Fica então a partilha do vídeo.  

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Boca do Inferno – Leituras de história contemporânea


Ler as crónicas de Ricardo Araújo Pereira é arriscar várias coisas. Primeiro, arrisca-se a ler algo escrito em bom português, com uma pontuação, construção frásica e recursos gramaticais impecáveis. Depois, e como é expectável, arrisca-se o sorriso e o riso, ou, para outros, aquela associação bem-humorada que diverte mas que fica guardada no pensamento individual, sem quaisquer manifestações físicas externas – admito que esse é mais o meu caso.

Mas o que me leva a escrever este texto não é nenhum dos dois casos anteriores. O que me motiva a invocar aqui os livros das crónicas “Boca do Inferno” é o seu potencial histórico. Quando peguei no último livro destas crónicas (o 3º no caso em questão), dei por mim a ler as crónicas de uma época passada, daquilo que era a actualidade na altura. Não sei se podem considerar como documentos históricos. Isto porque são crónicas subjectivas de humor, e porque o autor não é obrigado a nenhuma metodologia de criação de conhecimento histórico – embora Paul Veyne diga que a história não tem método. Ricardo Araújo Pereira não esconde os seus gostos e preferências, o que é aceitável e até útil já que se tratam de artigos de opinião. No entanto, por as fazer sobre temas de importância geral contemporânea – na maior parte dos casos – acaba por fazer uma súmula da história recente. Basta pegar nos livros, e se os lermos de seguida, vamos recordar episódios históricos recentes, e vamos fazê-lo de um modo leve e agradável, pois a motivação é a busca pelas interpretações humorísticas do autor. Assim, Ricardo Araújo Pereira faz, talvez sem intenção, bastante pelo desenvolvimento da história contemporânea nas suas obras “A Boca do Inferno”, pois faz-nos recordar a história (no sentido lato do termo) dos últimos anos. E, com as suas opiniões, contribui para que construamos a nossa, interpretando a história recente. Pelo menos não há o risco de sermos ocultamente direccionados para uma determinada prespetiva mascarada de imparcialidade, pois nisso não há dúvidas. Ricardo Araújo Pereira é tudo menos imparcial.
Importa não esquecer que a análise histórica da antiguidade se faz recorrendo também aos cronistas da época, e, que em muitos casos, será difícil saber quais desses escritos constituem provas incontestáveis do que realmente aconteceu. Nunca saberemos, em muito deles, se são de facto imparciais.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Tecnocracia – A Utopia que Platão Prescreveu na sua República?

Ao ler-se a República de Platão, fica a sensação que o conhecido filósofo não era grande apreciador da Democracia. Para ele o sistema ideal seria a Aristocracia [2], no sentido da etimologia da própria palavra, que era nada mais nada menos que “o governo dos melhores” [3]. Ou seja, Platão, no seguimento do pensamento socrático, considerava que o regime democrático muito suscetível de decisões políticas erradas, por desconhecimento e manipulação dos cidadãos ignorantes nos assuntos mais complexos, correndo-se também o risco dos cargos de topo serem ocupados por pessoas impreparadas para as exigências reais.
Os pretendentes - Leopold Schmutzler
Na sua defesa da atribuição dos cargos governativos aos “melhores” pretendia salvaguardar o bom governo [3]. Esses melhores seriam identificados depois pelas suas capacidades, conhecimentos. Não é por acaso que Platão considerava deverem ser os filósofos a governar, ou seja, os sábios, pois nessa altura a sabedoria era tendencialmente transversal e abrangente, ainda que alguns desses sábios se especializassem.
Assim, deste modo, será que Platão, segundo as suas palavras, próprias do seu tempo, em a República, defendia a tecnocracia [5;6]. Ou seja, que os melhores em cada área - no caso contemporâneos os técnicos [4] - deveriam ser os responsáveis governativos públicos pelas mesmas, numa clara oposição à democracia, em que qualquer cidadão poderia desempenhar qualquer cargo público.
Não é de estranhar que isto tenha sido polémico na altura, tendo o próprio Sócrates [1], entre outras razões também, cometido suicídio devido a estas críticas à democracia ateniense.
Quase na mesma lógica, mas já no século XIX, Max Weber refere-se ao termo "burocracia" como o governo da razão, numa relação de proximidade com a atual tecnocracia, isto sem qualquer conotação negativa assim associada. Para Weber, o poder burocrático (exercido por técnicos segundo a nossa atual conceção) seria um dos poderes daquilo que prescrevia como "Troikocracia" [7], que seria no fundo um equilíbrio de poderes (carismático, tradicional e burocrático) capaz do melhor sistema de governo possível.
Hoje em dia ainda se debate qual o equilíbrio entre democracia e tecnocracia, os limites e esferas de ação ideais de cada um desses sistemas/prescrições governativas. Resta saber qual será o próximo passo. Será que se cumpre o ideal platónico dos "filósofos" passarem a ser os nossos governantes? Será pela nomeação direta desses tais sábios ou pela transformação de todos os cidadãos, devido à crescente escolarização, em filósofos na especialidade (técnica)?
 
Referências bibliográficas

[1] "A Apologia de Sócrates", Platão, Guimarães editora, 2009.
[2] "Defender a Aristocracia faz sentido?", texto do blogue a Busca pela sabedoria, disponível em:
http://abuscapelasabedoria.blogspot.pt/2009/09/aristocracia.html
[3] "República ou Politeia", Platão, Guimarães Editores, 2005.
[4]"Técnico",  Dicionário online da Porto editora, disponível em:
http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/t%C3%A9cnico
[5]"Tecnocracia", Dicionário online da Porto editora, disponível em: http://www.infopedia.pt/lingua-portuguesa/tecnocracia
[6]"Tecnocracia", InfoEscola, disponível em: http://www.infoescola.com/formas-de-governo/tecnocracia/
[7] "Troikocracia, Weber e o Marquês de Pombal - segundo Miguel Pereira Lopes",  texto do blogue a Busca pela sabedoria, disponível em: http://abuscapelasabedoria.blogspot.pt/2014/05/troikocracia-weber-e-o-marques-de.html

terça-feira, 24 de junho de 2014

A economia serve para buscar a felicidade?

Existem imensas definições para caracterizar a economia. Se começarmos pela origem etimológica do termo (Oikos + Nomos = Casa + leis/costume/normas) concluímos que o termo pode ser incrivelmente vasto. Já desde a antiga Grécia filósofos e pensadores dedicaram atenção aos estudos da “economia”, ainda que com uma metodologia e abordagem muito distinta daquilo em que esta ciência (humana) viria a usar atualmente. Terá sido durante a Idade Moderna, com o mercantilismo, e depois na Idade Contemporânea com o desenvolvimento do capitalismo e revolução industrial, que o significado e método clássico de economia se terá definido.

Estúdio com crânio - Georges Braque

De um modo simplista poderia dizer-se que: a economia é a ciência humana que estuda os mecanismos de produção, consumo, distribuição e rendimentos de bens e serviços (sempre limitados) com vista à sua otimização. A definição é simples, e muito limitada, tendo em conta a sua abrangência, porque economia pode ser quase tudo, pois se pensarmos na origem etimológica do termo, será tudo menos simples definir o que são as regras (naturais e artificiais) da nossa casa (ambiente).
 
No entanto, encontrei recentemente uma possibilidade curiosa para o fim ou objetivo da economia que pode ajudar na sua compreensão e simplificação. Segundo o livro “Economia para totós”, a economia é a ciência que pretende otimizar o uso de bens e serviços para garantir o máximo de felicidade aos indivíduos. Não sei se isto é inocente ou não, mas não entra aqui a palavra lucro e acumulação de capital. É curiosa esta mudança, pois a essa “busca pela felicidade” os autores acrescentam também a componente ambiental, no sentido de que a “boa” economia será também a que garante sustentabilidade dos recursos. Ou seja, a economia será então a ferramenta que permite avaliar os recursos e bens, sempre escassos limitados, e organizar todo o sistema produtivo e distributivo de modo a garantir o que as pessoas pretendem, gerando felicidade e sustentabilidade ambiental.
 
Tudo isto pode ser ingenuidade, ou uma mudança de paradigma, especialmente relevante se pensarmos que vivemos numa altura em que se diaboliza a economia e os economistas. Será isto apenas uma ação de marketing, intencional ou não, dos economistas para defenderem a sua ciência - que não por acaso é humana -, tentando liga-la à causa ambiental, humanizando-a e modernizando-a perante o individualismo contemporâneo centrado na busca da felicidade individual?
 
Referência bibliográficas

domingo, 8 de junho de 2014

Uma Antologia Filosófica sobre o Trabalho

Começo já por avisar que este texto vai ser muito longo, pois é quase uma mini-antologia filosófica sobre o trabalho, embora possam faltar muitas teorias e pensadores. Então aqui vai.

De um modo geral, os antigos filósofos gregos desprezavam o trabalho físico. O trabalho, por surgir de uma necessidade física, era uma prisão, logo uma limitação e um atentado à liberdade. Só assim se compreende como nessas suas sociedades as elites intelectuais se tenham desenvolvido mantendo uma dependência tão grande do esclavagismo. Ou seja, a verdadeira liberdade só começava quando garantidas as necessidades mínimas, pelo que todo o trabalho que constituísse uma obrigação era para eles negativo. As atividades sublimes seriam as que não dependessem dessa obrigação básica, o que é contrário a toda a organização e estruturação laboral: contrária a horários, hierarquias, a responsabilidades definidas de produção e a vencimentos.


Angelus - Jean-François Millet
Por exemplo, para Platão, um artesão arriscava a falsidade, pois era um imitador da natureza (direta ou indiretamente), realidade essa que era também uma imitação da verdade, e não a verdade propriamente dita. Logo o trabalho, de criação e produção, era uma imitação de uma imitação, uma sequência de falsidades e defeitos replicados, em suma: um distanciamento da verdade evitável. A verdade e a beleza que só podiam ser atingidas através do imaterial, do conhecimento intelectual e do espírito. Esta visão teve impactos imensos na maior valorização posterior do trabalho intelectual face ao trabalho físico.

Aristóteles, por sua vez, distinguiu que a criação não era por si só negativa, pois não era uma imitação da realidade (que por sua vez era uma imitação da verdade – segundo a visão platónica). Para ele o artífice poderia remisturar a realidade, para atingir um trabalho benemérito. O artífice poderia criar o belo através da suar arte e engenho. Definiu assim quais os trabalhos que poderiam ser dignos, mas, de um modo geral, foi sempre a dimensão intelectual, onde a poética assumia muita importância, que continuou sendo a mais digna atividade do desenvolvimento humano.


Para além desta influência grega surge uma outra influência que marcará toda a nossa história: a cultura judaico/cristã. Será dos escritos sagrados fundamentais dessa corrente religiosa, seja em que versão for, que surge a ideia de um Deus trabalhador, que construiu o mundo. O mesmo Deus que, depois da desobediência de Adão e Eva – como os primeiros humanos –, os castigou com a expulsão do Paraíso, e dai em diante passando o castigo de depender do trabalho como forma de subsistência a toda a humanidade. Assim, toda a história das comunidades de origem judaico/cristãs centraram a sua cultura no trabalho, na noção de castigo divino, de obrigação até ao fim dos dias como algo incontornável, mesmo que essa noção negativa do trabalho estivesse apenas indiretamente presente na vida dessas comunidades, e da qual a nossa é herdeira.


Na época medieval o trabalho continuou a ser um sinónimo de penitência, basta relembrar que as classes privilegiadas - a nobreza - estavam proibidas de trabalhar, e que algumas formas de monaquismo visam o labor e a oração – ora et labora -como os únicos caminhos para a salvação, trabalhando o corpo e a alma. Pode-se dizer que foi São Tomás de Aquino quem nessa altura mais contribuiu para redefinir a ideia de trabalho, e de o expurgar de algum do seu valor negativo, reforçando que o trabalho poderia ser benéfico, incluindo até o comércio, quando desse frutos a toda a comunidade cristã.


Vários pensadores e filósofos, uns mais de ação intelectual outros geradores de novas realidades sociais – como por exemplo os iniciadores das cisões no cristianismo ocidental – foram desenvolvendo, por sua vez, pensando em toda a população e não apenas na vida dos mosteiros, a ideia de que o trabalho não era uma penitência degradante, mas uma forma útil de obter a salvação, e que a criação de riqueza poderia ser um sinónimo do bom trabalho do corpo e da alma. Não foi por acaso que Max Weber, no século XIX, relacionou o Protestantismo com o Espírito do Capitalismo, mesmo que outros se tenham servido de outros exemplo para relacionar o capitalismo com outras confissões religiosas e até outras razões.


Mas foi no século XVIII que se assumiu verdadeiramente a obtenção de riqueza como algo digno, e logo também do trabalho, contrariando muita da tradição cristã que abominava a acumulação de riqueza, fosse por que meio fosse. O principal autor conceptual, que redigiu essas ideias, foi Adam Smith. Para ele: “o trabalho era a única medida real e definitiva que poderia servir, em todos os tempos e em todos os lugares, para avaliar e comprar o valor de toda as mercadorias”. O trabalho constituiu-se como algo instrumental e abstrato, e a sua essência era o tempo. O trabalho não era senão aquilo que produzia riqueza. Para cientificar a noção de trabalho Malthus restringiu-o à produção de bens.


Voltando uns anos atrás, foi Locke que definiu o trabalho como símbolo da autonomia individual, na medida em que graças a ele o individuo se tornava capaz, pelo simples exercício da suas faculdades próprias, de satisfazer as suas necessidades negociando livremente o lugar que essas faculdades lhe permitiam obter na sociedade. O trabalho é então visto como uma capacidade da qual o individuo dispõe livremente e cujas condições de venda, estipuladas numa convenção resultante de um ato livre, negocia com um empregador. Deste modo surge a novidade da época: a liberdade do trabalhador decidir a quem presta os seus serviços, ficando para sempre em causa as antigas estruturas sociais de ordens, o feudalismo e as relações pessoais de dependência imutáveis. No entanto, o mundo estava longe de garantir igualdade na nova liberdade que se criava conceptualmente, pois as relações entre trabalhador e empregador (ou solicitador de trabalho) estavam longe de constituir uma igualdade entre pares.


O trabalho passou a ser a nova relação social que estruturou as sociedades ocidentais, no mesmo sentido em que o individualismo se assumia sem rodeios, embora fosse um conceito tão antigo como as religiões do livro ao defenderem o “livre arbítrio”. O trabalho assalariado desembaraçou-se das relações tradicionais de dependência pessoais, baseadas no parentesco, no sangue e no nascimento. Criou-se uma nova liberdade, mas, ao mesmo tempo, um novo condicionamento.


Por falar em condicionalismo à liberdade individual, será útil voltar novamente um pouco atrás. Ao assumir-se a noção de individualismo e do poder de ação do Homem, colocaram-se em causa as Leis Naturais imutáveis. Hobbes demonstrou que são os indivíduos os criadores das suas próprias leis, para si e por si; que se submetem a uma determinada autoridade por necessidade e medo. Assim também foi o mesmo para o trabalho, com o trabalhador submeter-se, em liberdade individual, a um empregador em troca de pagamento, formando uma nova lei e compromisso. Curiosamente, isto não era muito diferente do feudalismo, quando essa condição não era hereditária, e cada indivíduo podia decidir a quem prestar vassalagem. Seculos depois, Hegel aprofundou a ideia de que é o Homem quem faz a sua história – coisa que hoje nos parece obvia. Partindo de Hegel, Marx diz que o homem não pode existir de outro modo que não trabalhando, construindo a seu percurso, inspirando também no humanismo de Bacon – esse pensador que converteu, através da ciência e da razão, o medo em energia positiva. Para Marx, o verdadeiro trabalho era uma necessidade consciente visando fazer do mundo natural um mundo humano. Assim, o trabalho era a manifestação maior da individualidade, mas também constituiu o meio interior pelo qual se realiza a verdadeira sociabilidade. É através dele que se realiza a troca recíproca daquilo que cada um é verdadeiramente, ao colocar qualquer coisa de si no produto que faz e que troca por outros bens e serviços entre iguais.
Por sua vez, e na senda de Marx, Louis Blanc defendeu que o trabalho seria o veículo da realização do individuo e da garantia da felicidade, uma vez que o trabalhador, do ponto de vista ideal, faria exatamente o que gostaria, por no seu trabalho estar parte de si, do seu génio criador, que o realizaria e lhe traria então a felicidade. Esta visão utópica entrou posteriormente em choque com organização do trabalho taylorista/fordista, com a linha de montagem a contribuir para aprisionar qualquer eventual realização pessoal, criatividade e manifestação individual do trabalhador sujeito a esses princípios de produção. A standardização veio impossibilitar que uma parte importante do trabalho fosse criativo, e capaz de realizar aqueles para quem essa dimensão era essencial, mas pode muito bem ter trazido felicidade a outros espíritos, embora não se coadunando muito com a liberdade do espírito humano.


Por outro lado, o consumismo constituiu-se também como outra eventual prisão para quem fazia depender a sua subsistência do trabalho. O individualismo, em conjugação com o consumismo, criou uma nova armadilha. Para Hanna Arendt, o Homem moderno ficou escravo do trabalho por própria vontade, na incessante busca pelo enriquecimento urgente, aquele que nos torna pobres porque desaproveitamos a qualidade de vida no geral, e as outras dimensões da vida não produtivas que nos tornam humanos (cultura, religião, etc.). Também Heidegger vê no advento dos tempos modernos a redução das múltiplas relações que o homem mantinha com o mundo (relações de escuta, contemplação, e de ação) a uma só, a da produção-consumo. Desse modo, o trabalho como laço social é também muito redutor, pois obrigaria a traduzir toda a dimensão humana a uma relação de troca, de bens e de serviços. Segundo Hans Jonas, o capitalismo parece ser a forma mais eficaz e rápida de valorização, apoiando-se no interesse em que cada um tem em valorizar as suas capacidades, a fim de delas extrair benefícios. Isto, sem dúvida, é uma forma muito redutora de humanismo, e de vivência do individuo em comunidade. As nossas atividades humanas, felizmente, estão longe de apenas se traduzirem em produção para ganhos individuais. Se assim não fosse: a fraternidade e solidariedade seriam conceitos vazios, se bem que estão longe de ser universais.


Apesar de toda a nossa atual capacidade de acumular riqueza, e todas as possibilidades que o capitalismo em liberdade total permitiu, o Homem está longe de ser feliz. Lipovetsky argumenta que a decepção das sociedades contemporâneas, hiperconsumistas, provem da noção de existência da liberdade total de cada um se realizar pessoalmente, mas que, apesar de tudo, a felicidade continua por alcançar. Ou seja, não havendo barreiras evidentes à felicidade instala-se a frustração quando os indivíduos não a conseguem atingir, pois deixa de haver uma solução evidente ou desculpa para ela não chegar. Aqui há também um paralelismo com o desejo de ter e fazer o trabalho de sonho, aquele que realize e potencie individualmente cada pessoa.


Assim, depois de este longo texto podemos ver que a noção, definição e valor do trabalho estão longe de ser imutáveis, e até podemos dizer que a noção actual de trabalho foi, em parte, inventada no século XVIII. De qualquer dos modos, tome o futuro o rumo que tomar, será difícil conceber nele sociedades onde o trabalho seja secundarizado, mesmo que muitos trabalhos passem a ser feitos por maquinaria e tecnologia, pois novas formas de trabalho estão sempre a surgir. Mais que tudo, penso que importa, não sermos escravos do trabalho, mas usar o trabalho como garante da nossa felicidade.


Referências bibliográficas

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