segunda-feira, 30 de março de 2020

Repensar a cidade alargada na era da globalização, do trabalho remoto e das pandemias

No início do século XX o famoso arquiteto Frank Lloyd Wright propôs um modelo urbano e de cidade que não vingou. Chamava-se Broadacre city. Consistia, tal como o próprio nome indica, numa cidade alargada, com base na unidade do acre, implicando um alargado consumo de solo. Partia do princípio da integração de vivendas num ambiente urbano ruralizado, em que cada vivenda dispunha de uma área de solo de 0,4 hectares que serviriam para a sua própria produção ou para atividades de exterior. Esta proposta seria a antítese do urbanismo modernista e que se tornou no modelo de inspiração vigente um pouco por todo o mundo (Mumford, 1961; Chueca Goitia, 1985).

Broadacre City Model - Frank Lloyd Wright
Fonte: https://www.architecturelab.net/what-broadacre-city-can-teach-us/

Este tipo de cidade nunca foi implementado como modelo de cidade propriamente dito, mas foi continuamente replicado nos EUA como subúrbio, inspirando no modelo habitacional para a família americana de classe média e na dependência da industria automóvel nos pós 2.ª Guerra mundial, embora a utilização dos solos associados a cada vivenda nunca tenham tido uma exploração agrícola associada, e não tenham chegada à unidade de área recomendada para cada casa. Os subúrbios cresceram em massa com os centros das cidades americanas esvaziarem-se de residentes, ficando apenas os mais pobres a viver nesses antigos espaços. Algo que, na época, levou a socióloga Jane Jacobs (2016) a dizer que as grandes cidades americanas estavam mortas, pela perda das estruturas urbanas e suas relações sociais que deveriam manter a coesão e funcionamento das sociedades urbanas. 

O modelo proposto pelo famoso Lloyd Wright, conhecido pelo organicismo modernista da Casa da Cascata, e das formas arrojadas do Museu Guggenheim de Nova York, falhava porque dependia totalmente do automóvel. Para garantir tanto espaço livre para cada habitação, e por não se preverem aglomerados em altura, as distâncias a percorrer neste modelo urbano individualista teriam de ser feitas por automóvel privado. Se, mesmo sem levar este modelo à prática, as cidades atuais se mostraram insustentáveis pelo excesso de automóveis, imagine-se como seria se o modelo cidade alargada se tivesse generalizado. Curiosamente, atendendo à realidade Portuguesa, e ao conceito de urbanismo disperso que se manifesta nas periferias urbanas e nas zonas rurais de transição, acabamos por implementar estes modelos de cidade alargada, mas ao longo de vias, naquilo a que Álvaro Domingues (2010), Domingues chamou “A Rua da Estrada”.

Mas numa altura em que vivemos sob clausura, devido à pandemia do COVID-19, estes modelos de cidade alargada parecem ser boas soluções, por permitirem afastamento social com fruição da vida fora de portas e área de solo suficiente para explorar agricolamente para subsistência das unidades familiares. No enanto, não deixam de ser modelos urbanos que tendem para uma forte insustentabilidade, que implicam custos que podem chegar a ser até cerca de 5 vezes mais para o fornecimento de infraestruturas públicas, serviços e transportes (Carvalho et al., 2013). Por isso, a aparente sustentabilidade agrícola perde-se nos efeitos negativos da insustentabilidade geral, pois a vida contemporânea exige muitas outras necessidades. Nunca nos podemos esquecer que o solo é um recurso natural não renovável. No entanto, na era das comunicações instantâneas de banda larga e do teletrabalho pela internet, onde se dispensam tantas deslocações, alguns destes modelos possam ser repensados. Se considerarmos que os próprios sistemas de transportes, com os veículos autónomos movidos a energias sustentáveis a surgir, ficamos com ainda mais incertezas sobre a ocupação futura do território. Será que passaremos a considerar os modelos de ocupação do solo de média densidade como a melhor opção?

Referências bibliográficas
Carvalho, J., D'Abreu, A., Pais, C., & Gomes, P. (2013). Ocupação Dispersa: Custos e benefícios à escala local. Direcção Geral do Território, Lisboa, Portugal.
Chueca Goitia, F. (1985). Breve historia del urbanismo (No. 307.7672 C4).
Domingues, Á. (2010). A rua da estrada. Cidades-Comunidades e Territórios, 59-67.
Jacobs, J. (2016). The death and life of great American cities. Vintage.
Mumford, L. (1961). The city in history: Its origins, its transformations, and its prospects (Vol. 67). Houghton Mifflin Harcourt.

sexta-feira, 13 de março de 2020

A Origem da Quarentena

Com a pandemia do COVID-19 a palavra quarentena entrou no nosso vocabulário diário. Atendo aqui ao intuito de partilha de conhecimento do blogue, muito dele de origem histórica, é pertinente investigar um pouco sobre a origem do termo. Assim podemos também usar o conhecimento histórico para refletir e introduzir outros assuntos que estão para além dele, neste caso sobre os métodos de controlo de pandemias.

Vista da Quarentena em Lyon - Jean-Michel Grobon

Foram várias as pandemias registadas na história. Casos de doenças contagiosas eram também motivo para medidas especiais de contenção de propagação, muitas delas associadas a medidas preventivas de higiene, mesmo em épocas como a Idade Média. Há que relembrar que existiam cudados de higiene na idade média e que as pessoas que viviam nessa época não eram indiferentes à higiene individual e pública (Magnunsson, 2013; Smith, 2008), embora estivessem longe dos hábitos atuais. A total falta de higiene e cuidado sanitário, e até uma tendência para imundice, durante a época medieval é um mito. 

Sabemos que os doentes com lepra eram ostracizados e forçados a viver à parte da sociedade medieval. Sabemos que esses doentes, tal como outros enfermos, eram colocados e forçados a permanecerem em locais foram das cidades, caso disso em Portugal são as "gafanhas"* topónimos que ainda encontramos pelo território nacional, mas que na era medieval se destinava a acolher e conter pessoas indesejadas e contaminadas. Sabemos também que muitos cercos a cidades e castelos eram vencidos mais pelas doenças que pelo confronto militar. Temos o caso do cerco a Lisboa em 1384, anterior à famosa batalha de Aljubarrota, que teve de ser levantado pelos castelhanos, uma vez que as suas tropas estavam a ser dizimadas por efeitos de “pestes”**. Foi a doença que salvou a capital do reino de cair em mãos castelhanas e permitiu continuar as guerras pela manutenção da independência.

Apesar destes hábitos antigos, a termo quarentena terá origem nas medidas de controlo de epidemias pela República de Veneza, especialmente da peste bubónica, conhecida como peste negra, de assolou a Eurásia e norte de Africa a partir de meados do século XIV. A primeira medida deste género foi tomada em Ragusa, atual Dubrovnik. Em 1377, o grande concelho da cidade, que era dominada pelo império ultramarino de Veneza, aprovou o trentino. Essa medida consistia em 30 dias de isolamento do barcos e respetivas tripulações que chegavam ao porto da cidade. Só depois desse período podia haver contacto com a população e feitas as transações comerciais (Mackowiak & Sehdev, 2002). Foi a forma encontrada para controlar contágios num império comercial. Não se sabe exatamente como dos 30 dias se passou para os 40, do trentino para o quarentino. Hoje sabemos que os tempos de segurança para prevenir contágio, tendo em conta os períodos de incubação, rondam os 28 dias para maioria das doenças, mas na época a adoção dos 40 dias pode ter tido uma razão religiosa, de influência dos 40 dias tipicamente utilizados e simbolismo importante na cultura judaico-cristã. O caso mais evidente é o da quaresma, com os seus 40 dias de duração (Ibem, Idem). 

Tudo indica que a quarentena seja uma medida muito antiga, fruto do conhecimento empírico e experimental que comprovou que os isolamentos sociais são a melhor forma de controlar pandemias e contágios de doenças desconhecidas. A razão da adoção dos 40 dias, que deu origem ao termo quarentena, pode ter então também uma influência cultural e religiosa. Hoje as quarentenas já não duram exatamente os 40 dias, dependendo de cada caso, mas os efeitos práticos continuam a ser exatamente os mesmos. 

Referências bibliográficas:
Magnusson, R. J. (2013). Medieval urban environmental history. History Compass, 11(3), 189-200.
Mackowiak, P.A. & Sehdev, P. S (2002). The Origin of Quarantine. Clinical Infectious Diseases, Volume 35, Issue 9(1), 1071–1072, https://doi.org/10.1086/344062
Smith, V. S. (2008). Clean: a history of personal hygiene and purity. Oxford University Press.

*Gafanha in Dicionário infopédia de Toponímia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-03-13 12:42:22]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/dicionarios/toponimia/Gafanha
**Crise de 1383-1385 in Infopédia [em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2020. [consult. 2020-03-13 12:44:32]. Disponível na Internet: https://www.infopedia.pt/$crise-de-1383-1385

segunda-feira, 9 de março de 2020

Sex Education: uma séria multiplamente utópica

Umas das primeiras series que comecei a ver na Netflix - se não foi mesmo a primeira - foi Sex Education. Tinha boa avaliação, era recente e parecia encaixar em preferências partilhadas com a esposa. O palpite estava correto, consumimos a primeira série num instante. E a segunda temporada, que saiu recentemente, foi vista ainda mais depressa. 

Fonte da imagem: https://noticiasetecnologia.com/netflix-imagens-temporada-2-sex-education/


Sex Education decorre, supostamente, no universo tipificado das series e filmes sobre adolescentes, algures na Inglaterra contemporânea. O contexto é uma escola secundária, com muitas personagens, umas mais preponderantes que outras, que se cruzam em múltiplas relações reais e surreais onde o sexo é o mote. É a expressão surrealista, ou hiper-realista que faz sobressair “Sex Education” como uma série de humor bem diferente. Há um toque de realidade, de exagero, e de exagero que fica aquém de realidades ocultas muito para além do sexo. 

A personagem principal, um jovem altamente condicionado pelas suas fobias sexuais – faltando aqui um termo mais técnico – acaba por ser o terapeuta sexual da sua escola, replicando e reinterpretando o conhecimento que obtém indiretamente através dos seus pais divorciados – eles sim sexólogos. Isto por si só já é caricato e obviamente tem requisitos suficientes para gerar histórias interessantes. No entanto, neste microcosmos os tabus são removidos sem nos avisarem. Todas as formas de sexualidade são expostas sem tabus, com humor, mas sem infantilidades. Isso é tão refrescante, tão diferente e tão original. Para além de tudo isso é efetivamente uma série educativa – algo que é muito dificil de fazer na prática. Aprendemos de facto com esta série, apesar de ter momentos hilariantes de humor, tal como momentos de tensão trágica. Sex Education vai abrir-vos a cabeça. E se pensam que não têm preconceitos provavelmente estão enganados – eu pensava que não tinha. Mas o melhor que têm a fazer é ver a série por vós mesmos, e experimentar aprender de forma emocional e intensa, apesar da distância enorme que separa a TV da realidade replicada. 

Os atores são realmente competentes e expostos a situações desconfortáveis. A fotografia, cenários, planos de filmagem e guarda roupa impecáveis, com qualidade máxima. Ajudam a criar, apesar de tudo, uma utopia – o tal lugar que não existe. Quanto ao enredo e história surge o equilibrio perfeito entre realidade, ficção e surrealismo que permite transmitir entretenimento e informação de forma integrada. 

Mas Sex Education é então uma série educativa utópica, por vários motivos. É pouco provável que existam comunidades escolares assim tão livres e tolerantes - infelizmente. Verdadeiramente utópico é também, mudando completamente de assunto, o modelo urbano apresentado, porque existe uma clara cultura urbana que supostamente vive numa paisagem rural, onde todas as habitações estão isoladas e integradas na natureza, incluindo a própria escola. Está sempre bom tempo – nunca chove nesta Inglaterra - e tudo é distante apesar de rapidamente se chegar a pé ou de bicicleta a qualquer lado. Os automóveis são todos antigos, o que é realmente bizarro nesta utopia verde, apesar dos smartphones dominarem. A comunidade é etnicamente muito diversificada, multicultural a um nível que será dificil de existir em comunidades pequenas. Apesar disso são poucas as manifestações de choques culturais. 

Agora que remato o texto com estas palavras fico com a sensação de que o tema de Sex Education é a utopia social. Tudo feito de uma forma em que a dimensão sexual parece ser aquela utopia mais próxima de podermos mudar. Afinal quem ainda tem medo de falar de sexo?

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