terça-feira, 24 de setembro de 2019

Participar não é sinónimo de colaborar

É muito comum usar os termos participação e colaboração quase como sinónimos, por vezes mesmo como meros adjetivos em tentativas de descrever alguns processos de decisão pública como sendo abertos aos cidadãos. No entanto os dois conceitos são muito diferentes, convindo evitar o seu uso como mero floreado para adornar um qualquer exercício de poder público. 

American Gothic - Grant Wood
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/American_Gothic
Convém ir ler um pouco o que foi sendo escrito sobre isto. Podemos voltar a Arnstein (1969) que definiu a sua escada da participação, com 8 degraus crescentes de participação e decisão dos cidadãos: manipulação, terapia, informação, consulta, apaziguamento, parceria, delegação de poder, controlo cidadão. Notamos na base desta escada um poder manipulador do poder político e no topo um poder partilhado com os cidadãos. Creighton (1992) simplificou e definiu apenas 4 divisões: informação pública, em que os cidadãos são meramente informados das decisões; participação formal, devendo haver audição antes das decisões; consulta, com abertura e poder dos cidadãos para influenciarem a decisão; construção de consensos com os cidadãos, incluindo reformulações e ajustes até que se concorde com a decisão. Münster et al. (2017) simplificaram ainda mais, dividindo os processos de participação em três níveis básicos: informação, consulta e colaboração.

Estas breves referências servem apenas de enquadramento para percebermos que a participação pode ser muito diferente da colaboração. Participar podem ser uma atividade tão passiva como estar presente para ser manipulado pelo poder político representativo, segundo o primeiro nível da escada de Arnstein (1969), mas pode ser, numa perspetiva menos negativa, apenas uma forma de aceder à informação, embora sem possibilidade de intervir, segundo a abordagem de Creighton (1992) e Münster et al. (2017).

Assim, a colaboração relaciona-se com a construção de consensos, o que obriga a uma atividade de negociação, cedências e criação conjunta de novas soluções. Ou seja, na prática é algo que obriga a um processo propositadamente desenhado para esse efeito e que não ocorre naturalmente. Está muito além de uma mera comunicação ou explicação de uma decisão, obrigando a que se criem as metodologias para que as pessoas possam participar livremente e em igualdade, sem constrangimentos de poder. Normalmente uma dessas condições relaciona-se com o conceito de racionalidade comunicativa de Habermas (1981). Não basta juntar as pessoas numa sala e esperar que surja algo, um consenso e uma resolução. 

Assim, devemos ser críticos de quem mistura deliberadamente os termos participação e colaboração, especialmente quando servem para manipulação dos ditos participantes. Não esquecer o primeiro nível da escala de Arnstein (1969). 

Bibliografia:
Arnstein, S. (1969). A ladder of citizen participation. Jaip, 35(4), 216–224.
Creighton, J. L. (1992). Involving citizens in community decision making: A guidebook. Program for Community Problem Solving.
Habermas J. (1981), The Theory of Communicative Action: Reason and the Rationalization of Society. Boston: Beacon Press.
Münster, S., Georgi, C., Heijne, K., Klamert, K., Noennig, J. R., Pump, M., ... & van der Meer, H. (2017). How to involve inhabitants in urban design planning by using digital tools? An overview on a state of the art, key challenges and promising approaches. Procedia computer science, 112, 2391-2405.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Racionalidade Ignorante: somos ignorantes porque queremos

Na era da informação massificada, facilmente acessível e em tempo real, porque grassa tanta ignorância? Krek (2005) avança com uma explicação, ao dizer que as pessoas tendem a ser “racionalmente ignorantes”. Com isto quer dizer que fazem uma seleção com base no esforço necessário para conhecer ou dominar um certo assunto ou atividade. Como esse esforço pode ser grande, longo e sem trazer qualquer garantia de sucesso, podemos optar por ser ignorantes. 

Homens lendo - Goya
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Men_Reading#/media/File:Hombres_leyendo.jpg

E isto tende a ser cada vez mais comum porque o mundo está cada vez mais complexo. Tanto porque o conhecimento científico avança e tentar dominar apenas uma pequena área do saber pode ser um esforço pesado, se não mesmo impossível, podendo levar a uma vida inteira de estudo e investigação sem se chegar a esse objetivo. Por outro lado, os nossos contextos sociais estão mais complexos. A própria realidade é de uma profunda complexidade por todo o mundo. Estamos rodeados de problemas complexos, que se podem definir como aqueles para os quais existem múltiplas soluções possíveis sem existir uma solução ótima clara (Innes & Booher, 2016). De notar que o ótimo depende sempre do critério de avaliação, e que hoje em dia existem critérios imensamente distintos, de indivíduos para indivíduos. A complexidade de valores é imensa e variada.

Tendemos então a ser ignorantes em determinados assuntos e a escolher outros para nos especializarmos. O tempo é limitado e as solicitações cada vez mais. O critério de seleção nem sempre se guia pela busca de conhecimento ou aperfeiçoamento. Muitas vezes é simplesmente uma escolha pelo que dá mais prazer, algo muito tipico de sociedades livres, hedonistas, consumistas e do pós-modernismo, em que cada um se configura e reconfigura ao seu bel-prazer. Na verdade, não é bem assim, ou não é assim algo que se faça tão facilmente apesar de ser possível, porque as estruturas sociais têm efeitos e implicam restrições, ainda que sejam cada vez mais fáceis estes processos de escolha. Estes fenómenos ocorrem em redes, potenciadas pela tecnologia que escapam às delimitações territoriais (Castells, 1996), num movimento que podemos ver explicado pelo estruturalismo de Giddens (1984), que nos diz que tanto somos influenciados pela sociedade como a influenciamos. 

Então estão criadas as condições para sermos ignorantes por opção, porque racionalmente assim decidimos. Poderia pensar-se que o futuro a humanidade seria uma era de conhecimento gerado pela liberdade e acesso à informação, mas provavelmente será apenas livremente ignorante. Parece absurdo, mas pode ser tudo reduzido a uma questão de liberdade. Se antigamente, fruto do pensamento humanista e iluminista, a humanidade queria libertar-se para saber, agora liberta-se para poder escolher entre o saber e a ignorância.

Referências bibliográficas:
Castells, M. 1996. The rise of the network society. The Information Age: Economy, society and culture. Vol 1. Cambridge, MA: Blackwell.
Giddens, A. (1984). The constitution of society. Berkeley: University of California Press.
Innes, J. E., & Booher, D. E. (2016). Collaborative rationality as a strategy for working with wicked problems. Landscape and urban planning, 154, 8-10.
Krek, A. (2005), Rational ignorance of the citizens in public participatory planning. In 10th Symposium on information- and communication-technologies (ICT) in urban planning and spatial development and impacts of ICT on physical space, CORP 05. Vienna University of Technology: Vienna.

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