Fruto de algumas viagens, e recolher de informações em diversos locais por onde fui passando, lembro duas curiosidades sobre canhões em duas das maiores cidades do Sul de França. Ambas as “estórias”, apesar de o elemento relacional serem os canhões de fortalezas existentes nas cidades em causa, denotam elementos contraditórios sociais, para não dizer o antagonismo entre classes sociais.
Os canhões destas estórias são os das cidades de Marselha e Nice, ambos pertencentes a fortalezas que defenderam, durante muitos anos, os portos e as próprias cidades. Hoje os canhões já não cumprem as suas funções. Em Nice quase nada existe da fortaleza, e seus canhões, sob um jardim e miradouro – uma ruina que até assenta muito bem na cidade. Das fortalezas, ainda bem conservadas que protegem o Porto Antigo de Marselha, também já não se avistam canhões, ficaram apenas as aberturas de onde anteriormente espreitavam. Mas vamos às curiosidades propriamente ditas, vamos às "estórias".
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Entrada do Porto de Marselha - Claude Joseph Vernet |
Consta que no século XIX, na altura em que Nice era uma colónia balnear muito importante e muito frequentada por Ingleses – pela burguesia e nobreza inglesa, tendo a própria rainha Victória por lá andado -, um inglês teve uma ideia. Conta a lenda que, de modo a evitar que a sua esposa se esquecesse de preparar o almoço a horas – mais um reforçar da ideia da grande pontualidade dos ingleses -, o tal inglês mandava disparar, exatamente às 12h00, do alto do monte do antigo forte (mesmo junto ao porto), um dos canhões. Hoje, todos os dias pelas 12h00, continua a ouvir-se o ecoar do som do canhão em Nice, embora tal seja assegurado por um moderno sistema de som de grande potência. O canhão já não se dispara, mas para os distraídos turistas, o susto, provavelmente, é o mesmo.
Já em Marselha, diz a história – desta vez com “h” - que os canhões, dispostos nos vários fortes e complexos defensivos, apontavam em duas direções distintas - no sentido figurado. Os canhões, como em todas as fortalezas do género, apontavam para os pontos estratégicos a defender, aqui especialmente para a entrada do porto, que era a grande riqueza deste que foi um dos maiores portos da Europa. No entanto, consta também que os canhões dos fortes apontavam, em simultâneo, para a própria cidade, especialmente para os bairros mais populares. A razão de ser disto deveu-se ao grande historial de revoltas que foram acontecendo por Marselha ao longo da história, especialmente no século XVIII e XIX. Não é por acaso que o hino de França, adotado depois da revolução francesa, se chame “A Marselhesa”.
Muitas leituras se poderão fazer destas duas histórias/estórias sobre tão particulares canhões. Mas, é evidente que existe aqui uma relação dicotómica e até luta entre classe: enquanto em Nice o canhão servia os caprichos dos mais abastados, em Marselha oprimia dos menos afortunados. As armas sempre tiveram essa particularidade: a de servirem para benefício de quem as dispunha...
Nota: qualquer roteiro turístico contará estas mesmas histórias, e também os autóctones de ambas as cidades.
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