quarta-feira, 28 de maio de 2014

Ramalho Ortigão e a Defesa do Património Edificado em Portugal

Ramalho Ortigão foi um homem do seu tempo, um erudito dedicado a várias áreas de atividade, mas especialmente às letras. Era um homem de causas e valores, por isso colocou a sua vida e escritos ao serviço do que considerava civicamente importante, tendo sido uma das suas lutas a defesa do património edificado nacional. Nessa demanda participou em várias iniciativas, desempenhou alguns cargos de responsabilidade e escreveu muito, tendo uma das suas obras marcado para sempre a essa temática entre terras lusas, constituindo-se quase como uma cartilha e modelo para a identificação do património e critérios de intervenção (Custódio, 2013). Essa obra, ainda hoje relevante e importantíssima, foi “O Culto da Arte em Portugal”, onde o autor ensaia um documento crítico e descritivo sobre o património artístico português, identificando muito património que, na época, se iam perdendo (Ortigão, 2007).
Excerto da imagem de Ramalho Ortigão pertencente à obra "O grupo do Leão" - Columbano Bordalo Pinheiro
Em finais do século XIX a preservação do património em Portugal estava mais atrás do da realidade dos países mais desenvolvidos da Europa. Tal facto seria devido ao atraso económico e de desenvolvimento do país, com a sua tardia industrialização (Costa et al, 2011) – essa revolução que mudou os sistemas produtivos e a própria sociedade que se queria livrar do obsoleto (Choay, 2010). Mas o progresso industrial teve os seus efeitos destrutivos, o que levou ao despertar de algumas elites, especialmente as artísticas e intelectuais, para um romantismo que procurava na simplicidade do passado o expoente da beleza e estética em oposição à uniformização galopante e massiva da industrialização. Assim surgiu a necessidade de preservar patrimónios móveis e imóveis. O sentimento de defesa do património distintivo das várias regiões bebeu também bastante dos movimentos nacionalistas (Rémond, 2011). O caso português não foi exceção, e a ação de Ramalho Ortigão inseriu-se nesse movimento que brotava pela Europa fora (Alves, 2009).

Mas mais do que identificar obras, a crítica de Ortigão – supostamente o primeiro crítico de arte em Portugal (Oliveira, 2008) – é uma reflexão sobre a sua área de estudo enquanto membro dirigente da comissão dos monumentos, tentando superar os modelos vigentes de salvaguarda e proteção do património (Custódio, 2013).

Para Ortigão existia um desleixo e desorganização da política da arte e património (Infopédia, 2014). Ortigão lamenta a falta de museus e o desvirtuamento do que tinha qualidade artística pela simples ignorância das gentes e artistas, que, sem conhecerem a arte nacional, emperram no banal e na imitação do estrangeiro e evitam a criação original. O papel de Ortigão na defesa do ensino nas temáticas do património foi igualmente importante e visionário.
 
O trabalho da comissão a quem esteve ligado foi em parte efémero pelo pouco tempo em que esteve constituída – tal como as iniciativas que já tinham acontecido no passado - (Alves, 2009) -, mas ficou lançada a semente, de uma entidade que bebeu muito do espírito crítico, erudito e batalhador de Ortigão (Custódio, 2013).

Apesar dos seus cuidados estudos, dos muitos ensaios, relatórios, memórias descritivas e visitas aos vários locais, existem autores que questionam os resultados práticos e a consequência dos seus trabalhos (Alves, 2009). Mesmo a sua famosa e importante obra, “O Culto da Arte em Portugal”, não está isenta de críticas, uma vez que “ não é uma obra técnica destinada à construção de um modelo de interpretação e definição dos monumentos, nem do modo como esse modelo pode intervir na estruturação da conservação e restauro” (Custódio, 2013). Também surgem críticas à obra por se considera que a “falta de referências mais pormenorizadas acaba por transformar a primeira parte deste livro num arrolamento sem ordem das desgraças do nosso património, muitas vezes descontextualizadas, misturando as ações oitocentistas de restauro com as transformações arquitetónicas setecentistas, executadas sob uma orientação totalmente distinta daquelas e, como tal, como uma leitura e compreensão totalmente diferentes” (Alves, 2009).

Nos seus vários cargos, chegou mesmo a desempenhar o papel de presidente do conselho dos monumentos nacionais, mas, ao contrário do seu sucesso nas questões das artes decorativas, as suas ações para o património edificado não obtiveram o êxito que desejava, tendo-se afastado posteriormente (Alves, 2009), pois os movimentos de salvaguarda ainda pouco podiam perante a força da modernidade, do novo e do moderno, especialmente naquela época de positivismo exacerbado.

Críticas à parte, pois quando se inova e se parte quase do zero, como foi o caso de Ramalho Ortigão nas questões da conceptualização escrita em português sobre as questões do património, é fácil, à distância dos anos, evidenciar críticas e lacunas. Mesmo criticável, a sua obra e ação foram importantíssimas para a salvaguarda do Património edificado em Portugal, especialmente porque influenciou os estudos e ações posteriores, que tentaram seguir os seus ensinamentos, aprofundando-os ou refutando-os. Fosse como fosse, a sua importância é quase sempre o ponto de partida, ou o marco inevitável nessa área de estudos. Por exemplo, anos depois, foi na I República que muito do seu trabalho seria aproveitado (Custódio, 2013), tal como por outras iniciativas posteriores, independentemente das motivações e momentos políticos.
 
Bibliografia
  • Alves, Alice Nogueira, “Ramalho Ortigão e o culto dos monumentos nacionais no século XIX”, tese de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 2009
  • Choay, Françoise, “A Alegoria do Património”, Lisboa, Edições 70, 2010
  • Costa, Leonor Freire; Lains, Pedro; Miranda, Susana Munch; “História da Economia Portuguesa – 1143-2011”, Lisboa, Esfera dos Livros, 2011.
  • Custódio, Jorge, “Renascença Artística e Práticas de Conservação e Restauro Arquitectónico em Portugal Durante a I República – Volume I”, Lisboa: Caleidoscópio, 2013.
  • França, José-Augusto, “História da Arte em Portugal – O Pombalismo e o Romantismo”, Lisboa, Editorial Presença, 2004.
  • Infopédia, “O Culto da Arte em Portugal”, disponível em: http://www.infopedia.pt/$o-culto-da-arte-em-portugal, acedido em 7 de Maio de 2014.
  • Oliveira, Leonel (coord.), “Quem é quem – Portugueses Célebres”, Lisboa, Circulo de Leitores, 2008.
  • Ortigão, Ramalho, “O Culto da Arte em Portugal”, Lisboa, Esfera do Caos, 2007
  • Rémond, René, “Introdução à história do nosso tempo – do antigo regime aos nossos dias”, Lisboa, Gradiva, 2011.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Troikocracia, Weber e o Marquês de Pombal - segundo Miguel Pereira Lopes

Tendo eu ido a assistir a uma conferência sobre Poder Autárquico fiquei surpreendido com uma das intervenções dos palestrantes, pois surgiram várias referências a Max Weber e ao Marquês de Pombal com o intuito propositado de controvérsia e reflexão crítica. Por isso, pareceu-me interessante referir aqui algumas das palavras de Miguel Pereira Lopes, professor no ISCSP - Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade de Lisboa, proferidas nessa conferência.

1.º Marquês de Pombal - Louis Michel Van Loo
 
Então o nosso palestrante defendeu que a boa governação se dava através da Troikocracia, que, segundo Max Weber, deveria resultar do equilíbrio de três poderes:
  • Poder Carismático – associado ao poder político, dos líderes políticos, suas capacidades mobilizadoras e seu espírito visionário e inovador (“que faz sonhar”), resultantes na nossa época contemporânea do sistema democrático.
  • Poder Tradicional – associado à tradição e hábitos sociais, convenções e outros.
  • Poder Legal/Técnico/Racional – termo que Miguel Pereira Lopes considera estar ligado à concepção de burocracia que Weber terá inventado, na altura sem qualquer conotação negativa.
Assim, supostamente, a boa governança resultaria de um equilíbrio destes três anteriores poderes, sendo isso a suposta Troikocracia. Foi sugerido que na nossa história tivemos um claro exemplo de sucesso em que essas três vertentes da troikocracia foram conjugadas com sucesso. Esse exemplo terá sido a governação do Marquês de Pombal, especialmente depois do evento do terramoto de 1755, quando a cidade necessitou de ser reconstruida, mas depois também ao longo de toda a sua governação. Parece então que o Marquês decidia em plena consciência e informação. Consta que permitia aos técnicos a sugestão de todo o tipo de soluções sem os condicionar. Só depois então decidia, com autoridade e força, dentre aquelas que lhes pareciam as melhores soluções o projeto a implementar, respeitando a sua visão política de desenvolvimento. Ou seja, o Marquês era o carismático e visionário inovador, que se legitimava e ligava ao poder tradicional pelo mandato e apoio real, e que decidia com base no poder racional e técnico burocrático.
Depois de apresentado deste modo o conceito de Troikocracia de Weber e de Miguel Pereira Lopes aprece menos polémico, e a ação do Marquês de Pombal incrivelmente simples e óbvia. Mas será que o conceito de Toikocracia não é, ainda assim, discutível? E será que esta metodologia do Marquês de Pombal é realmente aplicada na prática deste modo tão simplista?

terça-feira, 6 de maio de 2014

A Ponte Dona Maria Pia - Uma obra prima da engenharia e do património industrial

A Ponte Dona Maria Pia é um dos ícones e marcos da história industrial portuguesa, pelo que significou utilitariamente na sua época de construção, mas também pelo que continua a significar.
Para perceber a importância patrimonial desta estrutura de aço importa perceber a época e contexto da sua construção. Em meados do século XIX vivia-se em Portugal a Regeneração, e o governo de Fontes Pereira de Melo (Martins, 2014; Mattoso, 1998). Isso concretizou-se numa vontade governamental de forçar a modernização e industrialização do país (Cordeiro, 2009). Para a concretização dessa estratégia era imprescindível melhorar as vias de comunicação, conhecidamente deficitárias (Mattoso, 1998), sendo a opção pelo caminho-de-ferro incontornável. Assim fez-se por conectar os principais polos económicos do país, e a ligação Lisboa-Porto (Rodrigues, 2006) não podia ser descurada. Só que isso apresentava um desafio: o atravessamento do rio Douro junto ao Porto. Foi Manuel Afonso Espregueira, enquanto Diretor Geral da Companhia Real dos Caminhos de Ferro, quem resolveu o problema do atravessamento (Cordeiro, 2009), decidindo-se por uma ponte. Essa obra acabou por ser parte vital da revolução dos transportes que ocorreu na época (Mattoso, 1998).
Monte D. Maria Pia - Emílio Biel
Curiosamente, um dos maiores impactos que teve na economia na época foi no setor da construção (Mattoso, 1998) - o que leva a refletir sobre o modo como são planeados, e projetados, desde há séculos, os investimentos em Portugal, sendo que neste caso seria espectável que o maior impacto fosse no setor da indústria de bens transacionáveis, apesar de ser considerado um projeto exemplar a todos os níveis.
Inicialmente estaria previsto consagra-la a D. Fernando, mas acabou por ser D. Maria a dar nome à ponte, aquando da inauguração em 1877 (Costa et al., 2009). Naquela construção manifestou-se a ideologia da época, a da burguesia que quebrava as limitações tradicionais de classe e poder, e que abraçava projectos de investimento e desenvolvimento industrial, especialmente os de construção em aço, permitindo estruturas leves, grandiosas e de rápida execução (Martins, 2014). Talvez não terá sido por acaso que este marco da construção do ferro tenha sido erguido no Porto, cidade comercial e burguesa por excelência.
Para superar o desafio em causa foi lançado um concurso público internacional em 1875 (Franklin, 2010), ao qual concorreram 4 empresas com soluções diferentes. Venceu a proposta de Gustave Eiffel por razões de estética, estrutura, e, talvez mais que tudo, por ser a que menores custos propunha (Costa et al., 2009). Aliás, o preço foi tão baixo em relação aos concorrentes que foi constituída uma comissão excecional de 3 engenheiros franceses para confirmarem a proposta (Franklin, 2010).
Apesar da ponte ser atribuída a Gustave Eiffel, por ser o director do projeto e da empresa, o verdadeiro projetista e responsável pela solução adoptada terá sido Théophile Seyrig (Cordeiro, 2009; Franklin, 2010). Por Seyrig ser subalterno de Eiffel, e por este ter obtido fama imensa com a sua famosa torre de Paris, talvez sejam as razões pelas quais o seu nome raramente se associa à ponte D. Maria (Cordeiro, 2009). De qualquer dos modos, apesar das dúvidas de autoria e tipo de implicação de cada um dos engenheiros, é certo que estiveram
envolvidos, pois anos depois ambos descreveram com muita precisão os cálculo e métodos utilizados, que eram de facto arrojados e na vanguarda da tecnologia da época (Cordeiro, 2009; Franklin 2010). Terá sido essa a razão pela qual conseguiram uma proposta tão melhor que as restantes.
Então mas importa concretizar com mais pormenor o porquê do arrojo e originalidade técnica e estética da ponte. De facto as medidas técnicas adotadas foram vanguardistas. A estrutura é de uma impressionante leveza, composta por um arco biarticulado de 160 metros de vão (Costa, 2009; Franklin, 2010), que suporta o tabuleiro ferroviário de via simples, de 354 metros de comprimento (Rodrigues, 2006), através de pilares em treliça assentes em seis maciços de betão. O tabuleiro superior situa-se a 61 metros de altura do rio (Franklin, 2010). O tabuleiro é composto por 3 partes distintas, sobre o extradorso do arco e sobre as duas secções das margens assentes em pilares. A ponte foi dimensionada e preparada para resistir aos ventos ciclópicos que varrem aquela zona do vale do Douro, tal como para resistir aos gradientes e variações térmicas, com ligações absorventes e adaptáveis (Franklin, 2010).
Impressionante foi o modo como a obra decorreu sem acidentes, apesar dos 150 trabalhadores, da utilização de 1600 toneladas de aço (Costa, 2009) (que vinham na forma de vigas e outros elementos construtivos de França já cortados, furados e prontos a montar e rebitar) e do tempo record de construção em apenas 22 meses, tendo ocorrido nesse período uma cheia do rio (Franklin, 2010). Também o processo construtivo foi inovador, sendo construída simetricamente a partir das margens com as duas secções a avançarem em consola, tendo sido unidas a meio vão com um erro mínimo. Após concluída a ponte, intensamente avaliada, nada de registou de deficitário, e as flechas de 20 a 25 mm são impressionantes até para a tecnologia contemporânea.
Mas existiam limitações, uma vez que apenas uma composição de cada vez, com carga limitada e a velocidades de 20km/h, podia atravessar em segurança a ponte (Costa, 2009).
A ponte, tal como já se referiu, permitiu ao Porto assumir novamente a preponderância económica face a Gaia, onde se estavam a concentrar as atividades trazidas pela ferrovia antes da construção da ponte (Martins, 2014), impossibilitadas de atravessar o rio.
Assim a ponte, que continua ainda em excelente estado de conservação, é a manifestação máxima de uma época em que se inovou, se soube escolher e implementar alguns projetos profícuos e racionalmente constituídos. Também corporizou o desenvolvimento científico e do próprio positivismo da época, com os respetivos impactos sociais. Hoje a ponte continua ser um marco turístico, estando a ser pensados vários projectos de aproveitamento e valorização, o que demonstra como ainda é sentida como um valor importante a preservar.
Bibliografia

Costa, Fábio; Moreira, Miguel; Nunes, Vasco, “Ponte D. Maria - Gustave Eiffel”, blogue Arquitectura do Ferro, 2009, disponível em: http://arquitecturaferro.blogspot.pt/2009/02/ponte-d-maria-gustave-eiffel.html

Cordeiro, José Manuel Lopes, “Ponte D. Maria Pia: uma ponte de Eiffel… e de Seyrig”, Braga, 2009. Disponível em www.ocomboio.net

Guerra, Franklin, 2010, “história da engenharia em Portugal”, Porto, Publindústria.

Martins, A. “Ponte de D. Maria Pia”, IGESPAR, acedido em 8 de Abril de 2014, disponível em: http://www.igespar.pt/pt/patrimonio/pesquisa/geral/patrimonioimovel/detail/70405/
Mattoso, José (dir.), 1998, “História de Portugal” – O Liberalismo”, Volume 5”, Lisboa, Editorial Estampa.

Rodrigues, Adriano Vasco, 2006, “História breve da engenharia civil – pilar da civilização ocidental”, Porto, Ordem dos Engenheiros Região Norte.

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